- Criado: 27 Outubro 2019
Publicado em 27/10/2019
por Marta Arretche (Departamento de Ciência Política/USP),
Wanderley Guilherme se foi. Mas foi só fisicamente. Parafraseando Isaac Newton, não há dúvidas de que, se as ciências sociais brasileiras “viram mais longe, foi por estar sobre ombros de gigantes”. Wanderley foi um deles. Sua obra e seu incomensurável legado permanecem. Deitaram raízes no modo como exercemos nosso ofício.
Prever o golpe de 1964 foi um golaço. Mas, creio que os ombros sobre os quais nos apoiamos estão em uma atitude intelectual que formou gerações. Consistiu em um combate sem tréguas ao "complexo de viralata", que Nina Rodrigues, Oliveira Viana e até mesmo Monteiro Lobato inscreveram nas interpretações sobre o Brasil. Sua solução, contudo, foi diferente da encontrada por Gilberto Freyre, que converteu o vício em virtude, ao afirmar nossa superioridade.
Diferentemente, Wanderley nos ensinou a comparar de maneira sistemática e absolutamente rigorosa as evidências acerca do comportamento de um fenômeno de interesse no Brasil com o resto do mundo. Depreendo da leitura de seus trabalhos que evitar o determinismo biológico de Rousseau era uma de suas cismas. Para isto, cada artigo, cada capítulo revelava um trabalho de ourives sobre conceitos e sua operacionalização.
Wanderley produziu interpretações que se anteciparam à agenda comparada internacional. Quando publicou Cidadania e Justiça em 1979, a agenda sobre o welfare state ainda se debatia entre variantes do marxismo ou da teoria da modernização. Nos anos 70, a grande questão era investigar se a política disciplinaria os imperativos da acumulação capitalista (para uns) ou industrial (para outros). Esping-andersen só viria a publicar o trabalho mais influente sobre o tema em 1985, Politics against Markets. Mas a recusa de adotar o gasto como categoria de análise em favor das regras de titularidade das políticas bem como a interpretação de que estas últimas eram respostas a conflitos políticos de grande envergadura — parte da contribuição original de Esping-andersen — já estavam presentes em Cidadania e Justiça.
Wanderley recusou sistematicamente a separação entre teoria normativa e teoria positiva. Sua defesa da teoria alencariana da democracia proporcional, em O Cálculo do Conflito, mostra que esta separação não se justifica. Todo teórico normativo está motivado por uma crítica a práticas correntes. Portanto, toda teoria normativa se apoia em alguma avaliação positiva do mundo presente. Por outro lado, nenhuma análise positiva está isenta de orientações normativas. A seleção de temas nos estudos empíricos não está isenta de preferências sobre estados desejáveis de vida social. Em O Ex-Leviatã Brasileiro, Wanderley nos mostrou exaustivamente (como era seu estilo) como o conceito de tamanho desejável do Estado, quando medido pelo tamanho da burocracia, está ele mesmo impregnado por uma visão sobre o que o Estado deve fazer.
Wanderley produziu trabalhos cuja relevância ainda não foi devidamente incorporada ao repertório das ciências sociais. Em Justiça federativa e renovação no parlamento brasileiro, publicado no Cálculo do Conflito, introduziu o princípio da justiça federativa sob a ótica normativa dos riscos da tirania da maioria sobre a minoria. Mostrou que o estudo do impacto das instituições quase sempre se limitou a comparar seus efeitos sobre a representação partidária, mas ignorou que estas também afetam a distribuição de poder parlamentar entre regiões. Advogou que a proteção das minorias regionais é moralmente tão desejável quanto a proteção de minorias de indivíduos. Para tanto, introduziu categorias analíticas para mensurar a representação das regiões nas arenas decisórias nacionais.
Wanderley fará muita falta. Mas teremos que nos acostumar. Ficam seus livros, seus artigos, seus vídeos, suas colunas de jornal, expressão de sua incansável dedicação ao estudo das diversas dimensões do funcionamento da democracia. Nossa alegria é que sempre poderemos ler, ouvir, rever à vontade.