- Criado: 22 Abril 2020
Boletim Especial n. 25 - 22/04/2020
Desde que demos início ao projeto do Boletim Ciências Sociais e Coronavírus passamos a receber a colaboração de dezenas de colegas dispostos a fazer aportes, a partir das ciências sociais, sobre os efeitos da pandemia. Hoje iniciamos uma nova fase do boletim, publicando textos sempre em dupla, colocando-os em diálogo. No boletim n. 25 leremos a contribuição de Andreia Vicente da Silva e de Gabriela Irrazábal e Ana Lucía Olmos Álvarez. Ambas nos fazem pensar sobre o difícil tema da morte. No primeiro texto, o tema debatido são os velórios e, no segundo, as variações nas formas de reconhecer que um corpo está morto.
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Velórios em tempos de Covid-19
Por Andreia Vicente da Silva
No dia 25 de março de 2020, o Ministério da Saúde publicou um manual que define diretrizes sobre o “Manejo dos Corpos no contexto do novo coronavírus Covid-19”. Este manual contém recomendações técnicas que objetivam evitar a contaminação tanto dos profissionais que lidam diretamente com o cadáver quanto dos familiares durante os sepultamentos e enterros. Mas o que significam estas diretrizes no que diz respeito aos velórios do ponto de vista dos familiares? Quais os impactos do coronavírus nos rituais de morte?
O corpo do morto diagnosticado com coronavírus é tratado tecnicamente como altamente contaminador. Como a contaminação se dá pelo contato pessoa a pessoa e por meio de objetos e superfícies, a possibilidade de contágio através da aproximação e do toque no defunto permanece ativa por 24 horas ou mais. Diante desta perspectiva, o cadáver é considerado poluidor, não apenas no sentido tradicional associado ao apodrecimento que se inicia logo após a cessação da vida. Ele é classificado tecnicamente como potencialmente danoso à saúde por abrigar um agente biológico “classe 3” que é considerado difícil de conter. O procedimento orientado pela Organização Mundial da Saúde prevê uso de vários equipamentos de proteção individual (EPIs) pelos profissionais que lidam diretamente com o infectado evitando exposição a sangue, fluidos corporais, objetos e superfícies contaminadas.
Diante do perigo eminente, o corpo morto precisa ser muito rapidamente isolado e removido para que o vírus que nele habita não seja transferido. Ele é reconhecido apenas por um familiar ou responsável que deve manter a distância mínima de dois metros. Sugere-se, inclusive, que o reconhecimento seja feito por fotografia, a depender da estrutura, evitando ao máximo a aproximação do cadáver. Não é recomendado que sejam realizados serviços de Tanatopraxia que envolvem a conservação, asseio e embelezamento do cadáver. Nem mesmo a autópsia é realizada se o caso estiver confirmado. Todos os orifícios naturais e de drenagem devem ser rigorosamente tamponados, o cadáver envolto em três camadas de capas impermeáveis lacradas e cuja etiqueta descreve “COVID-19, agente biológico classe de risco 3”. No fim de todo processo de manejo, o defunto segue para o cemitério em um caixão lacrado e uma declaração de óbito é entregue à família com a descrição da doença causadora da morte, COVID-19 e CID B34.2 (no caso de infecção não especificada) ou U04.9 (no caso de síndrome respiratória aguda grave).
Todos estes procedimentos técnicos orientados por padrões internacionais, impactam diretamente os rituais de morte. Mesmo quando o doente ainda está no hospital, os familiares não podem acompanhá-lo e dedicar-lhe carinho e atenção. O isolamento imposto ao enfermo em quarto privativo ou em coorte (em caso de compartilhamento de espaço para vários leitos) impede a aproximação dos parentes e amigos. Interdita ao convalescente gestos de carinho, palavras ou demonstrações religiosas que são características em internamentos cujo estado grave do doente é decretado pela equipe médica. O paciente permanece sozinho em um quarto lacrado. Evitam-se todos os toques possíveis. A solidão dos moribundos do coronavírus é uma realidade irrefutável. Uma frustração enorme é relatada por aqueles que precisaram permitir que seus queridos tivessem uma finitude isolada. Os enlutados narram enorme tristeza quando se recordam que não puderam se aproximar e tocar os seus parentes quando ainda estavam com vida.
Velórios não são recomendados para corpos contaminados com coronavírus. Quando um ente querido diagnosticado ou com suspeita morre - em casos de indisponibilidade dos exames de confirmação-, os familiares não têm a oportunidade de se unir, chorar seu morto, se abraçar, contar suas histórias e elaborar a ruptura de uma vida repleta de relações. Aqueles vínculos que tradicionalmente aglomeram pessoas não podem ser acionados. “Meu pai acabou de morrer. Não haverá velório. Não venham me cumprimentar” – escreveu uma filha triste em um velório no Rio de Janeiro. O corpo não pode estar com eles porque ele agora abriga o agente infeccioso. Os vivos precisam se proteger do corpo do seu ente querido morto e também do contato com os parentes e amigos.
O velório é parte essencial dos rituais funerários justamente porque permite aos vivos reunidos em copresença um espaço de transição e de elaboração da mudança social que a morte impõe. É no velório que se inicia a transformação do vivo em morto através da visualização do cadáver, da observação da face da morte e dos toques no corpo que comprovam que aquele parente e amigo agora é um ancestral. A convivência com a matéria sem vida por algum tempo é uma forma que como humanos desenvolvemos de elaboração da metamorfose daquele com quem se conviveu. É preciso tocar, falar, chorar e rir o morto. O velório é parte da elaboração da perda. “Do hospital direto para o cemitério” - ouvi de uma enfermeira que trabalha no Hospital Universitário do Oeste do Paraná (HUOP/Unioeste) ao explicar que não existe a possibilidade de velório em Capela fechada ou mesmo tempo para os preparativos e escolhas de serviços funerários.
Tanto o Manual de Manejo dos Corpos do Ministério da Saúde quanto a Nota Técnica 04-2020 GVIMS-GGTES da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA) são categóricos em indicar que a família precisa receber informações sobre o risco de contaminação do seu morto e aconselham que se respeite “a dignidade dos mortos, sua cultura, tradições” em todo o processo funerário. De toda forma, os poucos enlutados que vão ao cemitério - que, de acordo com relatos, em média é de cinco pessoas -, além de terem que lidar com a dor da perda de um parente, também precisam lidar com a enorme frustração de um velório não realizado. Resta a eles observar o seu parente sendo enterrado de maneira muito rápida, algumas vezes em covas rasas e improvisadas - situação que pretende se tornar cada vez mais recorrente se as previsões sobre o avanço da pandemia se tornarem dados reais em cemitérios já lotados na maior parte das cidades brasileiras. Em grandes capitais, como é o caso de São Paulo, os corpos dos mortos já são levados em caixão fechado e são deixados em exposição em espaços abertos nos cemitérios pelo tempo máximo de 10 minutos para que pouquíssimos parentes possam se despedir do seu morto. Não são indicadas aglomerações e a urna funerária permanece lacrada.
Funeral March / Edvard Munch, 1897
Enterros relâmpagos, parentes desolados, luto frustrado. O avanço da pandemia no Brasil comprova a importância das atividades ritualizadas que muitas vezes não são percebidas em contextos de normalidade. A quarentena a que estamos submetidos é somente uma das facetas do avanço de um microorganismo que subverte lógicas e que interrompe as atividades mais tradicionais. Apego a operações rotinizadas, a noções sagradas, à ideia de assepsia e outros elementos que compõem o nosso imaginário ocidental devem ser revistas e reestruturadas num processo de construção de um novo modo de ser que pretende ser imposto por um agente não humano. Este agente não se importa nem considera distinções de classe, gênero, cor ou mesmo religião. O velório em tempos de coronavírus será negado a todos indistintamente.
Andreia Vicente da Silva é antropóloga e professora adjunta em antropologia na Universidade Estadual do Oeste do Paraná (UNIOESTE).
¿Cómo se gestionan la muerte y el duelo en situaciones de pandemia?
Por Gabriela Irrazábal e Ana Lucía Olmos Álvarez
El avance de la pandemia producto de la covid-19 ha llevado a los distintos países a adoptar medidas y protocolos de actuación sanitaria ante los casos de pacientes de gravedad que requieran la internación en unidades de terapia intensiva (UTI). La escasez de recursos ha llevado a la implantación de una jerarquización de los pacientes que privilegia a aquellos con mejor pronóstico de supervivencia (Linconao, 2020). Temas como la vida, la muerte y la justicia han sido tópicos de discusión tradicionales en bioética, especialmente a partir de la década de 1960 donde comenzaron a redefinirse los criterios de determinación oficial de la muerte. Los criterios clínicos oficiales para determinar el momento de la muerte basados en la interrupción del flujo sanguíneo fueron dejados de lado por el concepto de “muerte cerebral”1. Luego, surge la noción de estado vegetativo persistente (EVP) y aparecen situaciones a las cuales el criterio diagnóstico de muerte encefálica resulta ajena dando lugar a la “muerte neocortical”.
Estas diversas definiciones dieron origen a una estandarización de procedimientos de retiro del soporte vital y limitación del esfuerzo terapéutico con amplio consenso en la comunidad sanitaria internacional. La jerarquización de pacientes en función de su posiblidad de supervivencia conlleva a una reconfiguración en medio de una situación de emergencia de los estándares consensuados de atención en el final de la vida y numerosos dilemas éticos8: ¿quién accede al respirador?, ¿quién accede a la UTI?, ¿cómo se limita la intervención?, ¿cuál es el daño?, ¿quién debe vivir?, ¿quién debe morir?, ¿quién debe decidir?. Todas estas cuestiones aparecen como preguntas que requieren reflexión, nos recuerda Jonsen (2003), y que la situación de urgencia imposibilita. Suelen tomarse decisiones descentralizadas, recuperadas de la información que circula proveniente de organismos y sociedades científicas internacionales de manera desarticulada. Las decisiones de política sanitaria sobre el tratamiento a los cadáveres de personas fallecidas por Covid-19 en algunas jurisdicciones de la Argentina indican que a los cuerpos no se les practicarán autopsias y serán entregados en bolsas rojas (Calvo, 2020)2 con recomendación de cremación directa. Las familias por tanto no podrán despedirse ni mediante un servicio fúnebre ni podrán asistir al cementerio. Conocemos por trabajos previos3 que la entrega de restos cadavéricos en bolsas de morgue es entendida por las personas como “que sus seres queridos fueron entregados en bolsas de basura” o “como residuos” y que esta situación experimentada como traumática genera numerosos inconvenientes para retomar la vida cotidiana. Dada la masividad de la Covid-19, las muertes pueden expandirse a grandes niveles societales como vemos en Ecuador, con cadáveres acumulados por días en las casas familiares o en las veredas de los barrios, en Nueva York siendo trasladados en camiones de carnicería y en europa trasladados en camiones del ejército directo a los hornos de cremación. Nuestro país cuenta con una amplia tradición de ritos funerarios en la sociedad civil y el Estado, entendidos estos como ritos de pasaje4 y que a pesar de las transformaciones en las concepciones de la muerte contemporáneas se mantienen vigentes. La literatura existente sobre muertes violentas y como producto de desastres naturales o epidemias5 demuestra que estas situaciones generan efectos traumáticos sobre las poblaciones. Los efectos traumáticos en las biografías individuales de quienes pierden familiares y seres queridos en forma repentina impactan también a nivel social con consecuencias negativas para la recuperación de los sistemas sociales detenidos, como la economía, la producción, la educación y el trabajo. Las personas que atraviesan situaciones de duelo no resueltas difícilmente puedan integrarse a sus actividades cotidianas normalmente.
En el transcurso de la pandemia ha habido estimaciones sobre las pérdidas económicas a nivel del PIB a partir del establecimiento de las medidas de aislamiento obligatorias (cuarentenas). Según Sticco y Serricchio (2020) “paralizar 10 días todo el país”, dos semanas, con sábado y domingo, arrojaría una pérdida de más de USD 36.000 millones”.6 Asimismo, hay consenso en la consecuencias negativas para la salud mental de una población que atraviesa la pandemia cumpliendo las medidas de aislamiento7. Aunque nadie “calcula el costo” que tiene no poder despedir seres queridos y transcurrir duelos que impidan volver a las actividades cotidianas. En este sentido consideramos que desarrollar estándares nacionales de atención al final de la vida y el duelo respetando los diversos valores culturales, religiosos, seculares, étnicos y morales de nuestras sociedades plurales contribuirá a desarrollar estrategias sociales saludables para tramitar el trauma social generado por la pandemia y por las muertes masivas que esta provoca. Consideramos que las formas en que se gestionará la atención al final de la vida, las muertes y el duelo contribuirá a la integración de las personas a su vida cotidiana pudiendo desarrollar sus tareas laborales, educativas, sociales, religiosas y comunitarias necesarias para la recuperación de nuestros países.
Gabriela Irrazábal (UNAJ- Investigadora Adjunta de CONICET con sede Programa Sociedad, Cultura y Religión del Ceil)
Ana Lucía Olmos Álvarez (UNDAV- investigadora asistente CONICET).
1 Blanco, L. (2017) Muerte Digna. (online) Recuperado el 3/4/2020 en http://www.salud.gob.ar/dels/entradas/muerte-digna
2 Calvo, P. (2020, 4 de abril) Coronavirus: qué hará Argentina con los muertos por la enfermedad. Recuperado de https://www.clarin.com/sociedad/coronavirus-hara-argentina-muertos-enfermedad_0_VM5XVb5em.html
3 Felitti, K. & Irrazábal, G. (20189, Los no nacidos y las mujeres que los gestaban: significaciones, prácticas políticas y rituales en Buenos Aires ,Revista de Estudios Sociales, 64, 125-137.
4 Gayol, S. (2012) La celebración de los grandes hombres: funerales gloriosos y carreras post mortem en Argentina, Quinto Sol, (16) 2,. 1-29, Bragoni, B. (2013). Rituales mortuorios y ceremonial cívico: José de San Martín en el panteón argentino. Histórica, 37(2), 59-102.
5 Kohn, R., & Levav, I. (1990). Bereavement in Disaster: An Overview of the Research. International Journal of Mental Health, 19(2), 61-76. Retrieved April 4, 2020, from www.jstor.org/stable/41350312 . Ekanayake, S., Prince, M., Sumathipala, A., Siribaddana, S., & Morgan, C. (2013). "We lost all we had in a second": coping with grief and loss after a natural disaster. World psychiatry : official ournal of the World Psychiatric Association (WPA), 12(1), 69–75. https://doi.org/10.1002/wps.20018 , Sveen J, Bergh Johannesson K, Cernvall M, Arnberg FK (2018) Trajectories of prolonged grief one to six years after a natural disaster. PLoS ONE 13(12): e0209757. https://doi.org/10.1371/journal.pone.0209757 , Pål Kristensen, Lars Weisæth, and Trond Heir (2012). Bereavement and Mental Health aftr Sudden and Violent Losses: A Review. Psychiatry: Interpersonal and Biological Processes: Vol. 75, No. 1, pp. 76-97. https://doi.org/10.1521/psyc.2012.75.1.76; Bonanno, G. A., Ho, S. M. Y., Chan, J. C. K., Kwong, R. S. Y., Cheung, C. K. Y., Wong, C. P. Y., & Wong, V. C. W. (2008). Psychological resilience and dysfunction among hospitalized survivors of the SARS epidemic in Hong Kong: A latent class approach. Health Psychology, 27(5), 659–667. https://doi.org/10.1037/0278-6133.27.5.659 ; Aiken, L. (2001) Dying, death and Bereavement 4th. Ed., NJ: LEA. ; Stroebe, M., Stroebe, W., & Schut, H. (2003). Bereavement research: methodological issues and ethical concerns. Palliative Medicine, 17(3), 235–240. https://doi.org/10.1191/0269216303pm768rr ; Gail Bigelow & Jeremy Hollinger (1996) Grief and AIDS: Surviving Catastrophic Multiple Loss, The Hospice Journal, 11:4, 83-96, DOI: 10.1080/0742-969X.1996.11882837
6 Sticco, D. y Serrichio, S. (2020, 16 de marzo) Pérdidas por la pandemia: qué significa en términos económicos que el país esté parado 10 días. Recuperado de https://www.infobae.com/economia/2020/03/16/perdidas-por-la-pandemia-que-significa-en-terminos-economicos-que-el-pais-este-parado-10-dias/
7 Facultad de Psicología de la UBA (2020) Recomendaciones psicológicas para afrontar la pandemia. Recuperado de https://twitter.com/UBAPsicologia?ref_src=twsrc%5Etfw%7Ctwcamp%5Etweetembed%7Ctwterm%5E1241755051208642560&ref_url=https%3A%2F%2Fwww.telam.com.ar%2Fnotas%2F202003%2F443574-uba-recomendaciones-coronavirus.html
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Estes textos são parte de uma série de boletins sequenciais sobre o coronavírus e Ciências Sociais que está sendo publicada ao longo das próximas semanas. Trata-se de uma ação conjunta que reúne a Associação Nacional de Pós-Graduação em Ciências Sociais (ANPOCS), a Sociedade Brasileira de Sociologia (SBS), a Associação Brasileira de Antropologia (ABA), a Associação Brasileira de Ciência Política (ABCP) e a Associação dos Cientistas Sociais da Religião do Mercosul (ACSRM). Nos canais oficiais dessas associações estamos circulando textos curtos, que apresentam trabalhos que refletiram sobre epidemias. Esse é um esforço para continuar dando visibilidade ao que produzimos e também de afirmar a relevância dessas ciências para o enfrentamento da crise que estamos atravessando.
A publicação deste boletim também conta com o apoio da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC/SC), da Associação Nacional de Pós-Graduação em Geografia (ANPEGE), da Associação Nacional de Pós-Graduação em História (ANPUH), da Associação Nacional de Pós graduação e Pesquisa em Letras e Linguística (Anpoll) e da Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Planejamento Urbano e Regional (Anpur).
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Funeral March / Edvard Munch, 1897