- Criado: 27 Maio 2020
Boletim Especial n. 49 - 27/05/2020
O boletim n.49 aborda dois momentos importantes da vida, que se veem desestabilizados pela presença intensificada e ameaçadora da morte, colocada pela pandemia do coronavírus. Simone Dourado (UEM) questiona as noções que se têm sobre velhice, cujas definições, nos mostra, estão ainda mais em disputa com a ideia dos “grupos de risco” e deslocam nossas percepções sobre o próprio curso da vida. Enquanto Giovana Tempesta (UnB) nos fala da dificuldade que doulas têm tido para acessar os hospitais e acompanhar suas doulandas, sob a premissa do perigo de infecção, ao passo em que seu trabalho se mostra ainda mais essencial em um momento de medos e angústias.
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Como pensar a velhice em tempos de coronavírus
Por Simone Dourado
Esses dias, como estudiosa do processo de envelhecimento, me dei conta de como as inúmeras notícias sobre a pandemia de coronavírus provocaram reflexões sobre as visões que construímos da velhice. A COVID-19, doença causada pelo vírus SARS-COV-2, provoca sérias infecções respiratórias e levou à morte quase 180 mil pessoas no mundo, até o fim do mês de abril de 2020, sendo os idosos os mais afetados. Me veio à lembrança o trecho de uma crônica de Rachel de Queiroz que reproduzo aqui:
Você contempla no espelho, vê as rugas do seu rosto, do seu pescoço, como se olhasse uma máscara que se desfaz. Vê bem, sabe como está velho, embora não sinta que está velho. Sua alma, seus sentimentos, sua cabeça, nada disso confirma a palavra ou a imagem do espelho. Mas os outros só veem de você o que o espelho vê (Rachel de Queiroz, Não Aconselho Envelhecer.1
A crônica foi escrita por Rachel de Queiroz em 1995, quando a autora tinha 85 anos. Ela viria a morrer em 2003, com 93 anos. A imagem produzida pela escritora sobre a velhice é boa para pensar o processo de envelhecimento nas sociedades contemporâneas, pois evidencia uma contradição: as sociedades criam patamares de definição para quem é o idoso que não são assimilados por quem vive, contemporaneamente, a experiência de ampliação da longevidade humana. Nonagenárias como Rachel de Queiroz, que chegam a essa fase da vida em uma condição ativa, com controle de si, domínio do corpo, da mente e autonomia financeira, confrontam a ideia de que a velhice é um processo natural, o qual acarreta invariavelmente perdas e custos.
O contexto atual exige das ciências sociais uma reflexão sobre outra imagem atribuída à velhice: a fragilidade. Os idosos são nominados como os mais frágeis e vulneráveis nesse contexto de crise sanitária global. Mesmo os ativos, saudáveis, independentes física, mental e economicamente são classificados como grupo de risco, exigindo das sociedades e dos Estados atenção e cuidados.
A ampliação da população idosa no mundo vem sendo avaliada com pareceres que misturam celebração e desafio, como indica importante relatório produzido, em 2012, pela Organização Mundial da Saúde (OMS) - Ageing in the Twenty-First Century: a Celebration and a Challenge2. As pesquisas reunidas nesse levantamento da OMS, e em outros estudos, tratam a longevidade humana como um fenômeno que pode contribuir para a geração do crescimento econômico e social nas diferentes sociedades. Países europeus, com número expressivo de idosos vencidos pela COVID-19, tinham ampliado a definição etária de quem pode ser considerado idoso de 65 para 75 anos e mais. No início dos anos 2000, quando esse debate foi estabelecido, a questão central era viabilizar a participação efetiva dos mais velhos na vida pública em todas as décadas de vida após os 60 anos. As ações, sobretudo no terreno das políticas públicas, estiveram organizadas em torno de planejamentos que atendessem às demandas, às necessidades e aos direitos da população idosa de participação política e social. Contudo, o avanço da pandemia recolocou a marca dos 60 anos como uma idade de corte para o envelhecimento.
Como nos ensinam vários analistas do processo do envelhecimento, não é adequado falar em velhice no singular e sim em velhices no plural. Ao distinguir o processo de envelhecimento do momento de chegada na velhice, fase em que o risco de ficar doente e de perder as capacidades físicas e mentais aumenta, Simone de Beauvoir, em seu clássico trabalho A Velhice, indica que há algo correspondente às mudanças orgânicas, acompanhando o desenvolvimento do corpo biológico, e há algo relacionado com a definição pessoal, um momento específico no qual cada indivíduo constata que ficou velho. E, portanto, a retomada do marco dos 60 anos como uma idade de risco, em razão do coronavírus, é um passo atrás no caminho de significar de forma mais positiva o envelhecimento. As políticas de isolamento total de pessoas que, a partir dos 60 anos devem, inclusive, ser afastadas de seus postos de trabalho, uniu idosos que experimentam a velhice de muitas formas em diferentes lugares do mundo. O mundo se tornou perigoso para pessoas de diferentes gêneros, categorias profissionais, classes sociais e grupos étnicos que estão com 60 e mais anos. Nos cabe mostrar que essa uniformização etária é, como em vários outros momentos, uma arbitrariedade porque, como alguns dados sobre a pandemia evidenciam, são muito mais vulneráveis homens idosos, que ocupam os postos de trabalho com as menores remunerações, negros e residentes nas periferias do mundo.
Indivíduos que integram os mais diferentes grupos sociais constroem as suas próprias percepções da velhice, para além das definições fornecidas por organismos nacionais e internacionais e das instituições estatais que delimitam os grupos etários para o planejamento de políticas públicas específicas. Por último, inspirada pela crônica de Rachel de Queiroz, é preciso compreender que os idosos resistem a voltar para casa e a sair da vida pública que conquistaram porque não se percebem como sujeitos envelhecidos, o que deveria ser tratado como um avanço e não um problema. Como o isolamento social é a única medida reconhecidamente eficaz para evitar a propagação do vírus e resguardar as pessoas da doença, a tendência é culpar quem se contamina por ter se exposto, como ocorre com outras doenças. Culpar os idosos por terem se contaminado não vai resolver o problema e, talvez, crie outros.
Simone Pereira da Costa Dourado é professora associada do Departamento de Ciências Sociais e do Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da Universidade Estadual de Maringá. Integra o Núcleo de Pesquisa em Participação Política (Nuppol).
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1 https://cronicabrasileira.org.br/cronicas/8855/nao-aconselho-envelhecer
2 https://www.unfpa.org/sites/default/files/pub-pdf/Ageing%20report.pdf
Como apoiar o início da vida em tempos de morte?
Pensando sobre o ofício das doulas durante a pandemia
Por Giovana Acacia Tempesta
Fonte: https://br.depositphotos.com/vector-images/doula.html?qview=224552954
A pandemia de Covid-19 tem suscitado ou acentuado relevantes reflexões em torno do tipo de apoio oferecido à mulher gestante e puérpera. Nesta breve nota eu gostaria de focalizar o ofício das doulas e educadoras perinatais, profissionais que prestam informações qualificadas e apoio físico e emocional durante a gestação, o trabalho de parto e o pós-parto. A doulagem associada à educação perinatal vem se consolidando como uma ocupação nas duas últimas décadas, e ganhou força no bojo do movimento de “humanização” do parto e nascimento, que inicialmente visava denunciar o alarmante número de cesarianas realizadas no Brasil. O fundamento do suporte provido pelas doulas – cuja importância é endossada pela Organização Mundial de Saúde (OMS) – consiste em tratar a mulher como protagonista da gestação, do parto e do puerpério, partindo da premissa de que ela pode viver essas experiências de maneira segura, digna e satisfatória, respeitando sempre as singularidades de cada situação.
Uma das características mais conhecidas da atuação das doulas é a utilização de métodos não farmacológicos de alívio da dor, tais como massagens, chás e exercícios físicos e respiratórios, porém os estilos de doulagem são múltiplos e este universo abrange tanto doulas que celebram contratos individuais com mulheres que terão o parto numa instituição privada ou em sua casa (parto domiciliar planejado), como doulas que atuam de forma voluntária em hospitais e maternidades públicas. Hoje existem associações de doulas em todas as regiões do país e a sua representação em nível nacional é feita pela FenadoulasBR. Nos debates sobre a regulamentação da profissão desponta a proposta da doulagem como política pública, ou seja, está no horizonte assegurar o acompanhamento de doula para todas as mulheres, incluindo aquelas em situação de maior vulnerabilidade (adolescentes, mulheres com deficiência, pessoas LGBTQI+, moradoras do campo, indígenas, encarceradas, em situação de rua), de modo a favorecer a saúde e o bem-estar da mulher e do bebê, em termos abrangentes.
No último mês de março, assim que as autoridades brasileiras reconheceram a eclosão da pandemia, a decisão de vários hospitais e maternidades foi a de proibir a entrada das doulas, alegando que a diminuição do número de pessoas circulando nas instalações seria uma medida para reduzir as chances de contaminação das pacientes, dos bebês e dos profissionais. Num segundo momento, de modo semelhante ao que aconteceu, por exemplo, nos Estados Unidos e no Reino Unido, a proibição foi flexibilizada.
Até a data de hoje (26.04.20), não houve qualquer alteração nas legislações municipais e estaduais que asseguram o direito ao acompanhamento de doula, tampouco há menção às doulas nas notas técnicas específicas elaboradas pelo Ministério da Saúde. Entretanto, muitas doulas estão relatando que, se antes da pandemia já enfrentavam dificuldades para conseguir acompanhar suas clientes em instituições públicas e privadas, agora os obstáculos se amplificaram; há notícias inclusive de violação da Lei do Acompanhante (lei federal n.º 11.108, de 2005). Por outro lado, elas observam que residentes continuam circulando livremente nesses locais.
As doulas estão conversando sobre os riscos diversos que elas próprias correm e estão criando estratégias para continuar apoiando as mulheres de forma segura, tais como compra coletiva de equipamentos de proteção individual e priorização de encontros virtuais com a doulanda. Além disso, a FenadoulasBR está divulgando o documento Doulas e Covid-19. Guia prático para doulas, tradução do material elaborado pela associação de doulas DONA International. Outrossim, as doulas estão tecendo ponderações importantes, conscientes do fato de que os direitos das mulheres são sempre os primeiros a serem subtraídos em situações de crise.
Doulas estão em contato direto com os sentimentos de ansiedade e insegurança experimentados atualmente por gestantes e puérperas, além da apreensão das mulheres em relação ao local do parto , e sabem que as circunstâncias presentes levam ao delineamento de cenários bastante preocupantes. Por receio de se contaminar, a mulher pode esperar tempo demais em casa, antes de se dirigir à maternidade, e acabar tendo complicações; sozinha num ambiente estranho, sendo atendida por profissionais sob forte estresse, a mulher pode acabar sendo induzida a aceitar analgesia ou cesariana intraparto com o objetivo de abreviar a duração do trabalho de parto; os profissionais podem negligenciar o contato pele a pele e a amamentação na primeira hora de vida. Práticas como essas, que podem ser classificadas como violência obstétrica, levariam a um alto índice de desfechos desfavoráveis, gerando sofrimento mais ou menos intenso e duradouro, o que certamente favoreceria quadros de depressão pós-parto e síndrome de estresse pós-traumático. O puerpério em contexto pandêmico é outra inquietação, uma vez que a rede de apoio certamente será ainda mais reduzida; e, no caso de mulheres negras e pobres, há que se considerar a intensificação de sua vulnerabilidade socioeconômica.
Muitas doulas e outros profissionais de saúde críticos do atual modelo de atenção obstétrica estão de acordo em relação aos efeitos negativos da hospitalização massiva do parto e apontam como alternativa viável o modelo dos centros de parto normal, que opera de acordo com uma lógica menos intervencionista. A outra alternativa no radar, o parto domiciliar planejado, continua sendo acessível para poucas, tendo em vista seu alto custo.
Parece-me que, no contexto da pandemia, a proibição ou a colocação de empecilhos para a entrada das doulas nas instituições se deve menos ao fato de elas serem um potencial agente de transmissão do vírus e mais ao fato de serem efetivamente um “vetor” de conscientização de que a mulher não é um organismo isolado, tampouco o parto é, a priori, um evento médico. Tudo indica que a ameaça objetiva trazida pelo vírus vem sendo mobilizada pelo saber-poder biomédico no sentido de priorizar a mera sobrevivência da mãe e do bebê, por meio da atualização de imagens e pressupostos culturais fragmentadores, que alimentam a lógica patologizante hegemônica à qual o parto e todos os aspectos da reprodução são assimilados. Se é assim, havemos de reconhecer o valor da persistência das doulas em recusar a imagem da “mulher-organismo” e em colocar em prática uma ética do cuidado articulada a uma tecnologia leve, uma ética e uma tecnologia que configuram um contraponto à redução da relação de cuidado a uma série rígida de atos padronizados ou a um produto de mercado.
Conheceremos a dimensão do impacto desse cenário sobre a saúde mental das mulheres nos próximos meses e anos. Por ora, é fundamental seguir reafirmando, juntamente com as doulas e muitas outras pesquisadoras e ativistas, que a pessoa que gesta e dá à luz deve ser reconhecida como um sujeito pleno de direitos e desejos, ponto nodal de uma rede de relações que compõe e sustenta a vida – mesmo (ou sobretudo) em momentos de intensa ameaça de morte.
Giovana Acacia Tempesta é doutora em antropologia social, pesquisadora-colaboradora vinculada ao PPGAS/UnB e integrante do CASCA (Coletivo de Antropologia e Saúde Coletiva)/UnB.
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3 Recentemente, o Grupo de Estudos Feministas em Política e Educação (GIRA) da UFBA realizou pesquisa com mulheres em todo o país; os resultados indicam a magnitude e a complexidade dos impactos da pandemia entre gestantes e puérperas (https://diplomatique.org.br/as-gestantes-em-meio-a-pandemia-de-covid-19/?fbclid=IwAR3k6XJxYbtfrJdB4aHBJ7DYhUgM_7gDaAqEuiJPUcZHFGWnoP54L6vpuNA).
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Estes textos são parte de uma série de boletins sequenciais sobre o coronavírus e Ciências Sociais que está sendo publicada ao longo das próximas semanas. Trata-se de uma ação conjunta que reúne a Associação Nacional de Pós-Graduação em Ciências Sociais (ANPOCS), a Sociedade Brasileira de Sociologia (SBS), a Associação Brasileira de Antropologia (ABA), a Associação Brasileira de Ciência Política (ABCP) e a Associação dos Cientistas Sociais da Religião do Mercosul (ACSRM). Nos canais oficiais dessas associações estamos circulando textos curtos, que apresentam trabalhos que refletiram sobre epidemias. Esse é um esforço para continuar dando visibilidade ao que produzimos e também de afirmar a relevância dessas ciências para o enfrentamento da crise que estamos atravessando.
A publicação deste boletim também conta com o apoio da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC/SC), da Associação Nacional de Pós-Graduação em Geografia (ANPEGE), da Associação Nacional de Pós-Graduação em História (ANPUH), da Associação Nacional de Pós graduação e Pesquisa em Letras e Linguística (Anpoll) e da Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Planejamento Urbano e Regional (Anpur).
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