Logo boletim final
Boletim Especial n. 63 - 16/06/2020


No Boletim n.63, Camilla Freitas (UFPB) traz reflexões sobre as ideias de biopoder, vigilância e controle de corpos, atualizadas na emergência sanitária colocada pela pandemia do novo coronavírus, a partir de duas notícias voltadas para a questão da saúde em Fernando de Noronha. E Uliana Esteves (UFRJ) fala sobre o conceito de gastro-política, pontuando que os atos e manifestações de solidariedade, ampliados em momentos de crise, giram frequentemente ao redor da alimentação no caso do Brasil, onde as desigualdades sociais têm se intensificado devido à pandemia, colocando grande parte da população brasileira em situação de fome e insegurança alimentar.

________________________________________

Download do boletim em PDF

 

Travessia do medo: gestantes insulares e políticas de Estado no contexto do Covid-191

Por Camilla Iumatti Freitas

Boletim63 figura
Imagem 1: Registro feito de dentro da casa militar em Fernando de Noronha
Foto: Camilla Iumatti/ outubro 2018


Estava navegando pelas redes sociais, uma das minhas principais janelas pro mundo nesse período pandêmico, quando me deparei com a notícia: “Por medo de pegar Covid-19, grávida se nega a deixar Noronha para parto e é levada pela polícia para o aeroporto”2. Fiquei sem fôlego: pela polícia?! Não quis acreditar. Na hora o conceito de violência obstétrica saltou aos olhos e me fez refletir sobre a precocidade desta violência naquela ilha.


Segundo a reportagem, a gestante que havia completado 34 semanas de gestação, gravidez esta classificada como de risco habitual, foi alvo de condução coercitiva pela polícia para que pudesse cumprir as determinações regulamentares pela impossibilidade de realização de parto na ilha de Noronha. Essa condução deveu-se, sobretudo, à determinação judicial de que ela deveria ir para o continente, dada a avançada idade gestacional.


O caso ocorrido com a gestante foi publicizado no dia seguinte à outra notícia importante para Fernando de Noronha3, a notícia de que os 28 casos de pessoas que contraíram o novo coronavírus haviam sido curados e o isolamento social orientado pela Organização Mundial da Saúde – OMS – para o achatamento da curva de crescimento de contaminação, em Fernando de Noronha, havia surtido efeito.


Essas situações ilustram as tecnologias de governo adotadas para o controle de um conjunto de corpos individuais e disciplinados através do saber-poder médico, que representa o que Foucault chamou por biopoder. No caso específico de Noronha, a manifestação desse biopoder por um lado surtiu efeitos satisfatórios de controle pandêmico, por outro coagiu a gestante.


Atualmente, as gestantes que engravidam em território noronhense ali permanecem até as 28 semanas. No caso em tela, a gestante havia ultrapassado este limite, o que, segundo a reportagem, teria motivado a condução coercitiva da gestante. A biovigilância (Preciado, 2020), nesse caso, suplantou sua agência em decidir sobre a melhor condução para seu parto.


Noronha possui serviço de saúde universalizado através do SUS e não conta com clínicas e serviços particulares. No entanto, só possui um hospital público de assistência para ocorrências de baixa complexidade. A inviabilidade da realização de partos na ilha decorre de uma sucessão de regulamentações, como, por exemplo, do estabelecimento de diretrizes para a instalação de Centro de Parto Normal – CPN –, que deve atender a parturientes classificadas de baixo risco, regulamentado pela portaria nº 11 de 20154, que preconiza, dentre outras, os equipamentos e equipe mínimos necessários para a realização de partos normais, os quais devem estar localizados a tempo inferior a 20 minutos de distância de uma unidade de referência materno-infantil5.


O arquipélago de Noronha dista 541 km da capital pernambucana e o tráfego de pessoas se dá apenas por avião. Devido às áreas de proteção ambiental, existe o controle de voos na ilha, sendo impossibilitada a ocorrência de voos noturnos. Em decorrência desses obstáculos, as possibilidades de salvo aéreos que conduzam gestantes que porventura venham a ter complicações no parto, ficam anuladas nessas condições.


Diante desses impedimentos, ao completar 28 semanas de gestação, as mulheres residentes do distrito migram até o continente para aguardar o parto e os primeiros cuidados do puerpério. A determinação de semanas decorre de outra regulamentação, agora pela Agência Nacional de Aviação, que orienta a ocorrência de embarque de mulheres grávidas até as 28 semanas, variando de companhia aérea para o cumprimento deste limite.


As famílias noronhenses são impactadas pela sua institucionalização compulsória, porém, por outro lado, no caso específico do período de pandemia pelo qual o mundo atravessa, esse controle alcançou o resultado para “fazer-viver” corpos infectados pelo Covid-19.


As tecnologias disciplinares estatais surtem efeitos nos corpos individuais e, em Noronha, borram os limites da agência (Bourdieu, 1984) sobre a decisão das mulheres de onde devem parir, sobretudo diante de um evento-limite que cerceia a liberdade da população a nível mundial, o advento de um vírus e a instalação de uma pandemia com efeitos fatais em parte do mundo. Nesse sentido, será que diante do quadro pandêmico, com o aumento das possibilidades de infecção pelo Covid-19 na capital pernambucana, a regra do não nascimento em território noronhense, não poderia ser flexibilizada?


Vale salientar que, conforme nos alertou Rosamaria Carneiro (2020), o protocolo de controle de riscos para o Covid-19 foi alterado em abril de 2020, incluindo gestantes e puérperas como grupo de risco. No entanto, por um lado essa classificação de riscos para a contaminação do Covid-19 aumenta as possibilidades de escolhas de partos domiciliares, noutros casos, com o recorte racial e de classe, impossibilita a sua realização, dado os altos custos para tal. Aqui, eu acrescentaria o caso específico das mulheres noronhenses, para quem a possibilidade de partos domiciliares é nula e os corpos grávidos são alvo da biovigilância.


Se de um lado as iniciativas públicas de saúde adotadas em Noronha conduziram a efeitos satisfatórios no âmbito da saúde pública, por outro, cerceia a liberdade de escolha de mulheres que não têm saída para realizar seus partos. Tal contradição, conhecida pelas ciências sociais, dada a posição dos corpos femininos no âmbito social, nos evidencia a violência obstétrica como prática estatal, mesmo quando o discurso é sobre o cuidado.


O controle e vigilância sobre os corpos femininos garantiu a cidadania fetal (McCulloch, 2012), sobrepondo-se muitas vezes aos desejos da mulher que gesta. Tais corpos escorregam do campo individual ao engravidarem e passam a ser propriedade estatal (Carneiro, 2020), transformando-se num corpo-estado que carrega regulamentos, decisões e conduções coercitivas à revelia dos desejos individuais.


Camilla Iumatti Freitas é doutoranda do Programa de Pós Graduação em Antropologia Social da Universidade Federal da Paraíba. E-mail: milla.iumatti@gmail.com


Referências bibliográficas


BOURDIEU, Pierre. A linguagem autorizada: As condições sociais da eficácia do discurso ritual. In: Pierre Boudieu. A economia das trocas linguísticas. São Paulo: Edusp, 1996: 85-128.


CARNEIRO, Rosamaria. Gestar e Parir em tempos de Covid-19: uma tragédia anunciada?. Boletim n. 29. Ciências Sociais e Coronavírus. ANPOCS. 2020. Disponível em <https://portal.anpocs.org/index.php/ciencias-sociais/destaques/2343-boletim-n-29-cientistas-sociais-e-o-coronavirus > acesso em 11 de maio de 2020.


DONZELOT, Jacques. O governo através da família. In: A polícia das famílias. 2. Ed. Rio de Janeiro: Graal, 1986, p.49-89.


FONSECA, Cláudia. Tecnologias Globais de moralidade materna: as interseções entre ciência e política em programas “alternativos” de educação para a primeira infância. São Paulo: Editora Terceiro Nome, 2012.


FOUCAULT, Michel. Em defesa da Sociedade. Curso no Còllege France (1975-1976). Trad.: Maria Ermantina Galvão. Ed. Martins Fontes, 1999.


McCULLOCH, Alison. The rise of the fetal citizen. In: Women’s Studies Journal, 2012.


PRECIADO, Paul B. Aprendendo com o vírus. Disponível em: https://www.revistapunkto.com/2020/04/aprendendo-com-o-virus-paul-b-preciado.html <acesso em 16 de abril de 2020>

__________________________________

 

1 Agradeço às leituras atentas e contribuições de Pedro Nascimento, Beatriz Brandão e Darwin Assis.


2 Disponível em <https://g1.globo.com/pe/pernambuco/blog/viver-noronha/post/2020/05/10/por-medo-de-pegar-covid-19-gravida-se-nega-a-deixar-noronha-para-parto-e-e-levada-pela-policia-a-aeroporto.ghtml> acesso dia 10 de maio de 2020.

3 Disponível em < https://g1.globo.com/pe/pernambuco/blog/viver-noronha/post/2020/05/08/noronha-zera-casos-de-coronavirus-e-todos-os-pacientes-estao-curados.ghtml> acesso em 11 de maio de 2020.


4 Vide http://bvsms.saude.gov.br/bvs/saudelegis/gm/2015/prt0011_07_01_2015.html acesso em 11 de junho de 2019.

5 O tempo médio de Fernando de Noronha/PE para Recife/PE de avião é de 50 minutos a 1 hora e de Fernando de Noronha/PE para Natal/RN é de 45 minutos a 50 minutos.

 



Solidariedade e gastro-política na pandemia

Por Uliana Esteves

Bilhetinhos no elevador, vaquinhas online, apadrinhamentos de colegas, lives de grandes artistas, campanhas promovidas por movimentos sociais e organizações não-governamentais. Essas são algumas das ações classificadas como solidárias que vimos surgir no momento em que medidas de isolamento social passaram a ser praticadas no Brasil – a contragosto da presidência da república – como modo de prevenção à COVID-19. Muitas dessas ações envolvem a comida. Vão desde ofertas para fazer compras de supermercado para idosos à doação de cestas básicas para populações em situação de vulnerabilidade. Elas cuidam de prover o básico para a existência humana: a alimentação, que, no Brasil, é um direito constitucional.


Neste exercício, proponho pensar nas relações entre comida e solidariedade na pandemia à luz da noção de gastro-política de Arjun Appadurai (1981). Essa categoria chama atenção para os modos como a comida compõe parte do sistema semiótico de contextos particulares, articulando dinâmicas de socialização com consequências imediatas e com fins estruturais. Interdições, restrições e sequências regulam o contato com os alimentos e alocam papéis a diferentes indivíduos. A gastro-política trata, dessa forma, das situações que envolvem tais princípios, homogeneizando os atores ou os diferenciando. Nessas situações, a comida pode ser o meio ou a mensagem dos conflitos que a envolvem. Na emergência sanitária, o ato de (se) alimentar tem modulado a criatividade solidária dirigida a pessoas e populações afetadas pela crise, produzindo relações em torno da comida.


Boletim63 figura2Foto: vizinha retribui com bilhete oferta de ajuda deixada em um aviso no elevador6


Se é certo que o vírus pode acometer a todos, não é a todos que ele leva à iminência da fome. As práticas de solidariedade colocam em destaque tal ameaça. A orientação de isolamento social feita pela Organização Mundial de Saúde, reverberada no Brasil por parte de agentes do governo e da população, tem como um dos efeitos colaterais a perda de rendimento financeiro para milhões de pessoas. Como forma de gestão da crise, a Câmara dos Deputados aprovou o auxílio emergencial de 600 reais (resultado de discussões de propostas de renda básica feitas pela oposição)7. O processo para sanção da lei pela presidência da república e sua implementação pelo Ministério da Cidadania estendeu no tempo a precarização da condição desses milhões de brasileiros. A liberação dos recursos, iniciada em 09 de abril de 2020, contou com o que um parlamentar classificou como “burocracia desnecessária” que dificulta o atendimento àqueles que têm fome8. Cerca de um mês depois de estados decretarem quarentena, trabalhadores informais, autônomos, desempregados e microempreendedores individuais começaram a sacar o benefício9. Por complicações nos sistemas da Caixa Econômica Federal, o saque, porém, demorou a ser disponibilizado para todos que tentavam acessar o auxílio, contrariando a noção de emergência.


Nesse lapso, as ações de solidariedade se multiplicaram. Pelas diferentes mídias, chegam várias notícias. O Movimento de Pequenos Agricultores (MPA), por exemplo, tem realizado uma campanha nacional contra a fome. No Rio de Janeiro, o MPA distribui toneladas de alimentos agroecológicos para diferentes comunidades. Em São Paulo, o padre Júlio Lancellotti leva refeições para a população em situação de rua na região central da capital paulista10. Com a pandemia, as carreatas que costumavam distribuir quentinhas nos centros das capitais diminuíram sua frequência, agravando, ainda mais, a insegurança alimentar dessa população. O Instituto Marielle Franco, por sua vez, apresenta e localiza em seu site distintas iniciativas desenvolvidas nas periferias do Brasil, cobrindo o mapa do país de pontos vermelhos indicativos de cada uma delas11.


O imperativo “quem tem fome tem pressa”, cravado por Betinho nos anos 1990, volta à cena com essas iniciativas. Naquele período, quando o percentual da população brasileira em extrema pobreza passava dos 20% (IPEA, 2009)12, o sociólogo fomentou sua Ação da Cidadania contra a fome com a mobilização de comitês espalhados pelo país. Nos comitês, o termo solidariedade era polissêmico. Os sentidos de urgência e assistência dividiam lugar com o ativismo político por transformações estruturais, como detalhou Leilah Landim (1998). Atualmente, a Ação da Cidadania distribui alimentos a famílias atingidas pelos efeitos da pandemia. A rede afirma já ter ajudado milhares de pessoas através da distribuição de toneladas de alimentos. Para isso, pede o apoio da sociedade civil e do setor privado13.


Nessas práticas solidárias, a comida é constituída como uma materialidade da ajuda que condensa e possibilita feixes de relações quando precisamos nos afastar fisicamente. O isolamento transformado no slogan “fica em casa” vem seguido de um complemento: “quem puder”. Essa linha divisória entre quem pode e quem não pode ficar em casa é desenhada, também – para além da prestação de serviços classificados como essenciais – pelos marcadores sociais de diferença que modulam as experiências de viver a pandemia. A comida é mais um indicativo delas. Pedir comida por aplicativo, trocar receitas pela internet, ter um vizinho para fazer as compras de supermercado, poder higienizá-las e estocá-las são alguns dos contrastes entre o acesso à alimentação em casa e a necessidade de auxílio.


As práticas solidárias em torno da comida escancaram a desigualdade social brasileira ao desempenharem um papel relevante nos processos de sobrevivência cotidiana em meio à gestão da crise do novo coronavírus. A solidariedade enseja, assim, gastro-políticas da ajuda voltadas para a manutenção da vida, contrapondo-se às gramáticas de poder elaboradas, sistematicamente, em torno da morte . É através da prática da solidariedade que milhares de pessoas insistem na capacidade criativa de partilhar esperança, alento e garantir a alimentação, essa que, atualmente, parece ser mais um direito negligenciado.


Uliana Esteves é doutora em Antropologia Social pelo Museu Nacional/UFRJ e membro do Núcleo de Pesquisas em Economia e Cultura (NuCEC).


Referências bibliográficas:

APPADURAI, Arjun. Gastro-politics in Hindu South Asia. American Ethnologist. v. 8, n.3, p. 494-511, ago. 1981.

LANDIM, Leilah. Notas sobre a campanha do Betinho: ação cidadã e diversidades brasileiras. In ______. Ações em sociedade: militância, caridade, assistência etc. Rio de Janeiro: Nau editora, 1998.

_______________________________________

6 https://www.uol.com.br/vivabem/noticias/redacao/2020/03/15/coronavirus-mulher-deixa-bilhete-no-elevador-para-ajudar-vizinhos-idosos.htm

7 https://www.camara.leg.br/noticias/648307-lideres-da-oposicao-propoem-renda-basica-emergencial-durante-a-pandemia/

8 https://www.camara.leg.br/noticias/654892-deputados-aprovam-regras-para-evitar-bloqueio-do-auxilio-emergencial-por-falta-de-cpf/

9 https://g1.globo.com/economia/noticia/2020/04/20/auxilio-emergencial-caixa-diz-que-ja-pagou-r-122-bilhoes-para-179-milhoes-de-brasileiros.ghtml

10 https://noticias.uol.com.br/colunas/leonardo-sakamoto/2020/04/04/covid-19-demora-na-renda-basica-traz-fome-ao-povo-de-rua-diz-padre-julio.htm

11 https://www.institutomariellefranco.org/mapacoronanasperiferias

12 http://www.ipea.gov.br/portal/images/stories/PDFs/090924_compres30ricardo.pdf

13 https://www.acaodacidadania.com.br/acao-contra-corona

14 https://exame.abril.com.br/brasil/infelizmente-algumas-mortes-terao-paciencia-diz-bolsonaro-sobre-covid-19/


________________________________________


Estes textos são parte de uma série de boletins sequenciais sobre o coronavírus e Ciências Sociais que está sendo publicada ao longo das próximas semanas. Trata-se de uma ação conjunta que reúne a Associação Nacional de Pós-Graduação em Ciências Sociais (ANPOCS), a Sociedade Brasileira de Sociologia (SBS), a Associação Brasileira de Antropologia (ABA), a Associação Brasileira de Ciência Política (ABCP) e a Associação dos Cientistas Sociais da Religião do Mercosul (ACSRM). Nos canais oficiais dessas associações estamos circulando textos curtos, que apresentam trabalhos que refletiram sobre epidemias. Esse é um esforço para continuar dando visibilidade ao que produzimos e também de afirmar a relevância dessas ciências para o enfrentamento da crise que estamos atravessando.

A publicação deste boletim também conta com o apoio da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC/SC), da Associação Nacional de Pós-Graduação em Geografia (ANPEGE), da Associação Nacional de Pós-Graduação em História (ANPUH), da Associação Nacional de Pós graduação e Pesquisa em Letras e Linguística (Anpoll) e da Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Planejamento Urbano e Regional (Anpur).

Acompanhe e compartilhe!