- Criado: 18 Junho 2020
Boletim Especial n. 65 - 18/06/2020
No boletim n.65, Everton de Oliveira (UFSCar) parte de Encosta da Serra (RS), local onde realiza pesquisa, para refletir sobre a maneira como o capitalismo seleciona quais vidas devem ser mantidas na busca por sua manutenção e desenvolvimento, realidade escancarada pelo contexto atual, negando a periculosidade do novo coronavírus como justificativa para a continuidade das atividades econômicas. Cláudio Santiago Dias Jr. (UFMG) mostra, com dados do início de maio, a situação crítica e vulnerável na qual se encontram as populações indígenas, concentradas em sua grande maioria na região Norte, onde o avanço da pandemia se deu de forma rápida e violenta. É necessário dizer que, se naquele momento populações indígenas deveriam ser assistidas e protegidas por políticas públicas voltadas às suas necessidades e especificidades, isso se faz ainda mais urgente nesse momento, dado que os contágios e mortes apenas aumentaram.
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Capitalismo do massacre: enquadramentos da morte na pandemia de Covid-19
Por Everton de Oliveira
Releitura de Bansky da fotografia de Nick Ut sobre a fuga da menina Phan Thi Kim Phuc de um ataque de Napalm, no Vietnã, em 1972.
Oito de maio de 2020. Ultrapassamos, no Brasil, a marca de 9.000 mortos e de mais de 130 mil infectados. Em Brasília, empresários marcham na companhia do presidente da república em direção ao STF para pedir o retorno das atividades econômicas. Em Belém, no Pará, o prefeito declara que o trabalho de empregadas domésticas é um serviço essencial durante o isolamento (Sandes, 2020). Na mesma cidade, mas também em Manaus, ricos escapam de hospitais superlotados, alugando serviços de UTI móvel a preços que podem chegar a 80 mil reais (Rebello, 2020). No sul do país, mais precisamente no Vale dos Sinos (RS), as indústrias do maior polo calçadista do país voltaram a funcionar ainda em abril, quando a contaminação se acelerava no Brasil (Dihl, 2020). Aliviado, o presidente e fundador da XP Investimentos, Guilherme Benchimol, disse que na “classe média, classe média alta, a pandemia já passou”, mas o problema é que “o Brasil é um país com muita comunidade, muita favela” (Moura, 2020). Mas, na verdade, o problema do Brasil, assim como nos demais países da América Latina, é que seu capitalismo é baseado no massacre de corpos descartáveis. Aqui, o capitalismo não preza sequer pela manutenção vital mínima da população, fundamental para o sucesso das principais economias globais. Pelo contrário, por aqui, aliado à nossa tradição exportadora, colonialista e escravista, o capitalismo mata, destrói, massacra, não sem antes tomar os corpos de mulheres e homens e vendê-los como sobrevida à “classe média, classe média alta”.
É o capitalismo gângster, a necroeconomia, capitalismo zumbi, capitalismo gore, a governamentalização neoliberal. Esses são alguns dos adjetivos trazidos por Ariadna Estévez (2018) para caracterizar o neoliberalismo na América Latina. É de sua natureza sacrificar corpos para o sucesso econômico, tratar a vida como a moeda de troca da estabilidade econômica. Depende intimamente do narcotráfico, das milícias, da miséria, do Estado enfraquecido, dos corpos descartáveis, pois é justamente a vida que está à venda, para aqueles que são esquecidos pelo poder público. A reação negativa de empresários ao isolamento social não é, infelizmente, algo que foge à realidade do capitalismo do massacre que se desenvolve no Brasil há quase um século. A sociologia brasileira, desde Florestan Fernandes, aponta para a necessidade dos corpos precários para o sucesso neoliberal no Brasil, no qual negros, pobres, camponeses, trabalhadores rurais, indígenas são massacrados em vista da modernização e desenvolvimento do país.
É preciso entender em que enquadramento esse capitalismo gângster toma a vida, para entendermos, do mesmo modo, que vida a sua mão esquerda humanitária quer salvar, parafraseando aqui o antropólogo Michel Agier. Na Encosta da Serra (RS), onde realizo minha pesquisa há 10 anos, a política do massacre da pandemia é potencializada por outro fenômeno que lhe é singular: a epidemia de suicídios. Entender esse quadro pode oferecer a imagem do que a pandemia nos reserva, especialmente quando sua realidade é tomada como “passageira” e “exterior”. No caso dos suicídios, isso geralmente é associado a um fator exógeno, de fora, como a introdução de uma nova tecnologia social ou modo de produção em uma comunidade tradicional, como a indústria calçadista na Encosta da Serra, que produz um quadro de “doença social” ou “sofrimento social”. Mas as causas nem sempre vêm de fora. Na verdade, estão muitas vezes imbricadas no cotidiano dessas pessoas. Negar que um contexto é particularmente precário, como o contexto do contágio ou do suicídio, é negar a condição política da vida, manter invisíveis suas mortes.
O enquadramento da doença permite duas operações correlatas: a ideia de que o quadro “doentio” passará num futuro relativamente próximo e a suposição de que o que nos ataca não se relaciona com o nosso cotidiano. Nesse contexto, que é o contexto que abriga frases motivacionais de superação, como se o vírus já não compartilhasse conosco o mundo em que vivemos, a vida é tomada como uma existência purificada, apartada de uma morte possível. Isso leva a um discurso da defesa da vida que, contudo, é um discurso conservador e excludente. Que vidas devem ser salvas? De que vidas estamos falando? E do que queremos salvá-las? Purificar a vida, retirando a possibilidade da morte de seu horizonte, é negar que os corpos dispõem diferencialmente dos recursos necessários para que continuem vivos; é negar que o vírus, já partilhando conosco nosso cotidiano, afeta diferencialmente os corpos e os lugares como uma precariedade econômica e politicamente distribuída que, como sabem, já não afeta a “classe média, classe média alta”.
Voltemos ao sul do Brasil, para a Encosta da Serra. Desde abril, as atividades comerciais e industriais foram retomadas, exigindo-se apenas que as pessoas utilizem suas máscaras ao sair de casa, ainda que não fornecidas pelo poder público. Há aproximadamente 40 anos, essa região foi entregue à atividade industrial calçadista, o que evitou a penúria completa de seus municípios. Contudo, isso acabou por vincular (direta e indiretamente) a receita dessas cidades quase inteiramente à atividade industrial, que concentra mais de 50% das trabalhadoras e trabalhadores formais. Eles estão de volta às fábricas. As fábricas fazem parte de seu cotidiano, e retirá-los do trabalho, para pessoas que vinculam sua identidade moral ao trabalho, é massacrar seu cotidiano, em um contexto, lembrem-se, onde isso pode levar fatalmente o suicídio. Trata-se, portanto, também de um problema ético. Mas mandá-las de volta ao trabalho é expô-las ao contágio. Trata-se, aqui, de um problema econômico. E então, como feitiçaria, para utilizar a expressão de Isabelle Stengers e Philippe Pignarre (2011), o capitalismo opera marginalmente, compondo com as disposições morais e sociais dos lugares em que atua, fazendo com que a própria vida das pessoas passe a depender da perpetuação de sua vida massacrante.
A defesa à vida do capitalismo do massacre é declaradamente seletiva. Aniquila tudo aquilo que lhe parece descartável e oferta, em contrapartida, o que não podemos comprar: um contexto imune, um cotidiano sem dor. Isso não pode nos isentar de defender a distribuição igualitária das condições necessárias para que os corpos precários sobrevivam, apesar mesmo de sua precariedade, como lembrou Judith Butler (2015). Mas essa defesa parte de um lugar radicalmente distinto, pois assume de princípio que os corpos são em si precários e sua sobrevivência é, antes, um efeito da distribuição desigual das condições políticas e econômicas que um atributo essencial da vida – manter-se viva. O capitalismo do massacre propaga a ideia de que logo tudo vai passar. Mas não vai, especialmente para os corpos precários e marginalizados do Brasil. É preciso oferecer outro enquadramento ao seu discurso humanitário seletivo, e apontar que, para a maioria da população, o vírus agora compõe seu cotidiano de vida. Defender isso é defender as condições para que esse cotidiano não se desfigure completamente, com mais mortes, com mais vidas perdidas. É lembrar, do mesmo modo, que na companhia da mão humanitária do capitalismo brasileiro vem sua mão mais habilidosa, a do massacre, que clama por corpos para se manter vivo.
Everton de Oliveira é docente do Departamento de Sociologia da Universidade Federal de São Carlos, membro do Núcleo de Pesquisa em Antropologia do Corpo e da Saúde (NUPACS) do PPGAS/UFRGS, e do Laboratório de Antropologia da Religião (LAR) do IFCH/Unicamp.
Referências bibliográficas:
BUTLER, Judith. Quadros de guerra: quando a vida é passível de luto? Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2015.
DIHL, Bibiana. Paradas desde o fim de março, fábricas calçadistas retomam atividades no RS. Disponível em: https://gauchazh.clicrbs.com.br/economia/noticia/2020/04/paradas-desde-o-fim-de-marco-fabricas-calcadistas-retomam-atividades-no-rs-ck8yuo3pt02lt01nte2c4igw5.html.
ESTÉVEZ, Ariadna. Biopolítica y necropolítica: ¿constitutivos u opuestos? Espiral, Guadalajara, v. 25, n. 73, p. 9-43, set.-dez. 2018.
MOURA, Júlia. Pico de Covid-19 nas classes altas já passou; o desafio é que o Brasil tem muita favela, diz presidente da XP. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/mercado/2020/05/brasil-esta-indo-bem-no-controle-do-coronavirus-e-pico-nas-classes-altas-ja-passou-diz-presidente-da-xp.shtml.
PIGNARRE, Philippe & STENGERS, Isabelle. Capitalist Sorcery: braking the spell. Nova Iorque: Palgrave Macmillan, 2011.
REBELLO, Aiuri. Com rede privada sem vagas em Belém e Manaus, mais ricos fogem de UTI aérea. Disponível em: https://noticias.uol.com.br/saude/ultimas-noticias/redacao/2020/05/06/coronavirus-rede-privada-sem-vaga-manaus-belem-mais-ricos-fuga-uti-aerea-sp.htm.
SANDES, Arthur. Belém vai contra o entendimento nacional e inclui domésticas como essenciais. Disponível em: https://noticias.uol.com.br/cotidiano/ultimas-noticias/2020/05/06/belem-inclui-domesticas-entre-servicos-essenciais-durante-lockdown.htm.
COVID-19 nos quinze municípios com os maiores contingentes de população indígena do Estado do Amazonas
Por Cláudio Santiago Dias Jr.
A família em despedida ao líder Kokama. Vatican News.
Fonte: https://www.ecoamazonia.org.br/2020/05/pan-amazonia-brasil-pais-maior-numero-indigenas-infectados-mortos-covid-19/
Os últimos dados sobre o COVID-19 no Brasil mostram que o país atingiu o número de 101.147 pessoas contaminadas em 03 de maio de 2020. Os óbitos chegaram a 7.025 casos, com uma taxa de letalidade de 6,9%. A região Sudeste apresenta o maior número de casos confirmados (47,6%), seguida pelo Nordeste com (29,7%). A região Norte é a terceira com o maior número de casos confirmados (14,5%), seguida pelo Sul (5,5%) e Centro-Oeste (3,1%) (Ministério da Saúde, 2020).
O que chama a atenção nesses dados é o percentual de casos confirmados na região Norte, que é a quarta região mais populosa do Brasil, 8,4% do total da população, segundo estimativas do IBGE para 2019, mas é a terceira em números de COVID-19 (IBGE, 2020; Ministério da Saúde, 2020).
Na região Norte, o caso do estado do Amazonas é o mais dramático1. Mesmo não sendo o local com o maior número de casos confirmados do Brasil, apresenta as maiores taxas de incidência (1612/1.000.000) e mortalidade (132/1.000.000) (Ministério da Saúde, 2020). A situação no estado se mostra complicada, dentre outras coisas, porque segundo o censo realizado pela Associação de Medicina Intensiva Brasileira (AMIB) em 2016, havia apenas 489 leitos de UTI no estado, sendo 249 UTI´s de adultos, 16 UTI´s coronariana, 105 UTI´s neonatal e 119 UTI´s pediátricas, todas localizados na capital (AMIB, 2016).
Com a pressão no sistema de saúde do estado causada pelo avanço da contaminação pelo COVID-19, o sistema de saúde de Manaus entrou em colapso em abril. São 346 pacientes internados por COVID-19, não havendo mais vagas nas UTI´s do município para receber novas demandas (Prefeitura de Manaus, 2020).
Uma particularidade do estado do Amazonas é o grande número de indígenas. Segundo dados do Censo Populacional de 2010, quase 170 mil indígenas residiam no estado, cerca de 20% do total de indígenas no Brasil (IBGE, 2020). Além de ter a maior população indígena, o estado do Amazonas também possui o maior número de Terras Indígenas (TI´s) no Brasil (ISA, 2020). Com estas peculiaridades, ações direcionadas aos povos indígenas são urgentes, uma vez que elas são mais vulneráveis que os demais subgrupos populacionais (Dias Jr et al, 2009), têm um acesso restrito ao sistema de saúde (Azevedo et al, 2020) e estão em um estado onde o COVID-19 está se espalhando rapidamente (Gráfico 1).
Um aspecto importante mostrado por Azevedo et al (2020) é que, no Brasil, apenas 108 dos 1228 municípios com algum trecho de TI possuem leitos com UTI, o que evidencia a gravidade da situação entre os indígenas. No Amazonas, a situação é pior, uma vez que todos os leitos de UTI´s estão na capital. Esta situação faz com que as TI´s no estado apresentem uma situação de moderada a crítica em relação à vulnerabilidade com relação ao COVID-19 (Azevedo, 2020).
GRÁFICO 1 – Número de casos e óbitos (COVID-19) confirmados no estado do Amazonas até 03 de maio de 2020
Fonte: Ministério da Saúde, 2020.
Os dados levantados em 03 de maio de 2020 mostram que os 15 municípios com as maiores populações indígenas, em números absolutos, do estado do Amazonas, registraram casos de COVID-19, sendo que em onze deles ocorreram óbitos (Tabela 1). O município de Autazes apresentou a maior taxa de mortalidade e letalidade, chegando a 22,75/100000 e 10,23/100 habitantes respectivamente.
É importante salientar que em todos os quinze municípios existem Terras e/ou comunidades indígenas que abrigam várias etnias e línguas indígenas. Com o provável aumento da propagação do vírus no estado do Amazonas, é razoável supor que a vulnerabilidade em relação ao COVID-19 que os povos indígenas do Amazonas estão expostos pode gerar uma verdadeira catástrofe humanitária, principalmente dentro das TI´s.
Urge a necessidade de um plano de contingência para esta população específica. É preciso impedir a entrada do vírus nos municípios onde ainda não foram identificados casos e dar assistência aos povos indígenas residentes nos municípios com casos já notificados. Com a impossibilidade do estado do Amazonas em lidar com a pandemia, cabe ao governo federal ações específicas urgentes para mitigar os impactos do COVID-19 na população indígena.
Cláudio Santiago Dias Jr. é sociólogo, doutor em demografia e professor associado do Departamento de Sociologia e do Programa de Pós-Graduação em Sociologia da Universidade Federal de Minas Gerais. E-mail: csdj@ufmg.br.
Referência bibliográfica:
ASSOCIAÇÃO DE MEDICINA INTENSIVA BRASILEIRA - AMIB (2016) Censo AMIB 2016.
https://www.amib.org.br/fileadmin/user_upload/amib/2018/marco/19/Analise_de_Dados_UTI_Final.pdf
AZEVEDO, M et al. (2020) Análise de Vulnerabilidade Demográfica e Infraestrutural das Terras Indígenas à Covid-19. (mimeo)
http://www.nepo.unicamp.br/publicacoes/Caderno-Demografia-Indigena-e-COVID19.pdf
DIAS JUNIOR, CS et al. (2010) Desigualdades demográficas e socioeconômicas entre brancos e indígenas no Brasil. Redes, 15(2), 50-65. https://online.unisc.br/seer/index.php/redes/article/view/942
IBGE (2020) Cidades: Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística
ISA (2020) Terras Indígenas no Brasil
https://terrasindigenas.org.br/
MINISTÉRIO DA SAÚDE (2020) Coronavírus Brasil.
PREFEITURA DE MANAUS (2020) Prefeitura de Manaus.
https://covid19.manaus.am.gov.br/
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1 Os dados atualizados mostram que em 19 de maio de 2020 os números de contaminados chegou a 22.132 e óbitos 1.491 no Amazonas. Apenas os municípios de Envira e Ipixuna não contabilizaram casos de COVID-19 (Ministério da Saúde, 2020).
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Estes textos são parte de uma série de boletins sequenciais sobre o coronavírus e Ciências Sociais que está sendo publicada ao longo das próximas semanas. Trata-se de uma ação conjunta que reúne a Associação Nacional de Pós-Graduação em Ciências Sociais (ANPOCS), a Sociedade Brasileira de Sociologia (SBS), a Associação Brasileira de Antropologia (ABA), a Associação Brasileira de Ciência Política (ABCP) e a Associação dos Cientistas Sociais da Religião do Mercosul (ACSRM). Nos canais oficiais dessas associações estamos circulando textos curtos, que apresentam trabalhos que refletiram sobre epidemias. Esse é um esforço para continuar dando visibilidade ao que produzimos e também de afirmar a relevância dessas ciências para o enfrentamento da crise que estamos atravessando.
A publicação deste boletim também conta com o apoio da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC/SC), da Associação Nacional de Pós-Graduação em Geografia (ANPEGE), da Associação Nacional de Pós-Graduação em História (ANPUH), da Associação Nacional de Pós graduação e Pesquisa em Letras e Linguística (Anpoll) e da Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Planejamento Urbano e Regional (Anpur).
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