- Criado: 16 Dezembro 2020
Boletim Especial n. 30 - 16/12/2020
No Boletim n. 30, Walmir Pereira (Unisinos) conceitua o cenário de insegurança sanitária, social e política experienciado por comunidades indígenas em tempos de pandemia da Covid-19 no Brasil. Os números de contágio e letalidade entre comunidades indígenas, para o autor, evidenciam o racismo estrutural e institucional que nega o reconhecimento dos direitos humanos indígenas.
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Vidas indígenas em tempos pandêmicos: COVID-19 e a constância do racismo estrutural e institucional na saúde indígena
Por Walmir Pereira
Foto: Casos de Covid-19 explodem no território Sateré-Mawé, no Amazonas. Foto por Dsei Parintins. Disponível em: <https://amazonia.org.br/2020/10/casos-de-covid-19-explodem-no-territorio-satere-mawe-no-amazonas/>. Acesso em: 15/10/2020.
A ascensão ao poder de um governo conservador de feição protofascista e ultra neoliberal aliada à incidência global do novo coronavírus (SARS-CoV-2), trouxe à baila e avivou o déficit de republicanismo e as fissuras de uma sociedade historicamente desigual e injusta. Neste contexto de pandemia sanitária e risco à manutenção do estado democrático de direito, em que pese o marco legal da Constituição de 1988 constituir um capítulo ímpar no reconhecimento das diversidades e especificidades socioculturais, ambientais e territoriais indígenas, amplificam-se na arena política interesses opostos à extensão da justiça socioambiental e étnica aos 305 povos indígenas e seus modos de vida e (r)existências. Nesse cenário disruptivo de insegurança e precariedade vivido no cotidiano das existências indígenas, a presença em cena da Covid-19 representa um legítimo fenômeno social total (MAUSS, 2003).
Em estrita observância ao cenário aqui registrado, os indicadores epidemiológicos referentes aos primeiros 06 meses de proliferação pandêmica confirmam percentuais significativos de contágio e a prevalência de elevada letalidade entre indígenas. Essas mortes anunciadas sinalizam o quão distante nos encontramos da assunção de um horizonte de reconhecimento dos direitos humanos indígenas. Forçoso lembrar que desde 11 de março p.p., momento em que a Organização Mundial da Saúde (OMS) classificou a SARS-CoV-2 como pandemia, as predições de referentes cosmológicos, assim como dos profissionais de saúde indígena e ativistas de base local, regional e nacional da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB) chamavam atenção à vulnerabilidade demográfica e infra estrutural dos espaços territoriais indígenas (Terras Indígenas, acampamentos e aldeias) localizados em múltiplos contextos urbanos e rurais do país.
A crise sanitária, amplificada pelas crises ambiental, econômica e ético política vigentes, manifestas na consolidação dos indicadores epidemiológicos registrados, nos leva a apreender esse momento como índice do secular padrão de poder dominante na relação de contato entre os agentes e agências “coloniais” e os povos indígenas. Historicamente produtor de práticas excludentes e discriminatórias, o referido padrão estabeleceu o desencontro de visões eurocêntricas e cosmovisões indígenas, performando a colonialidade do poder (QUIJANO, 2005) como elemento fundacional distintivo do sistema mundo colonial moderno.
No que diz respeito ao campo da saúde indígena, conquanto a legitimidade dos direitos firmados entre 1988-2015 e a persistência de mecanismos que assegurem o cumprimento das ações protetivas diferenciadas continuem operantes, a conjuntura vigente expõe um aumento de narrativas anti-indígenas e a incidência de práticas contrárias ao implemento dos dispositivos legais à disposição da Secretaria Especial de Saúde Indígena (SESAI) na implementação e execução dos serviços de saúde. A rigor, o recrudescimento da matriz autoritária nacional, expresso de forma inequívoca pelo golpe de estado parlamentar em maio de 2016, constitui um salvo conduto ao crescente processo de desdemocratização e ataque aos avanços e garantias constitucionais conquistados pela sociedade brasileira após a redemocratização.
Neste contexto, a proliferação da pandemia de Covid-19 acaba assumindo um aspecto de tragicidade no domínio da atenção e cuidada à saúde indígena. Sua propagação inicial esteve concentrada nas regiões norte e nordeste do país. Num segundo momento, distingue-se uma maior incidência de casos nas regiões Centro-Oeste, Sudeste e Sul. Nas últimas semanas de setembro aconteceram novos contágios que apareceram no norte, em Roraima e Amazonas. Dados do Comitê Nacional pela Vida e Memória Indígena da APIB, no início de outubro, registraram óbitos em 158 povos, com um total de 35.000 contaminados e a confirmação de 800 mortes indígenas[1].
Em larga medida, a disseminação da Covid-19 entre os povos indígenas exemplifica o tratamento dispensado aos coletivos originários no âmbito da atenção primária à saúde indígena. Embora a agência oficial afiance a adoção de medidas protocolares na prestação de atendimento diferenciado aos indígenas, vide Plano de Contingência Nacional para Infecção Humana pelo novo Coronavírus (Covid-19) em Povos Indígenas[2], a realidade da experiência pandêmica incidente entre os povos, aldeias e pessoas indígenas evidencia um cenário que caminha em direção oposta. De forma sistemática, o modus operandi da SESAI tem ativado dispositivos e práticas contrários aos ditames constitucionais pactuados entre diversos e plurais interesses societais do universo sócio-sanitário brasileiro.
Em consonância com o entendimento crítico da coordenadora executiva da APIB, “as subnotificações e o fato da Sesai não acompanhar e registrar os indígenas que vivem nas cidades fora dos territórios tradicionais são um ato de racismo institucional” (GUAJAJARA, 2020). A proliferação da Covid-19 trouxe consigo o crescimento dos atos de racismo e machismo cometidos por autoridades governamentais, fato exemplificado no mandatário presidencial “denunciado no Tribunal Penal Internacional de Haia por crimes contra a humanidade e genocídio indígena por seu descaso consciente em face da pandemia e da crise de saúde” (PAZOS, 2020). O próprio Supremo Tribunal Federal reconheceu, no domínio da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental, as violações a que estão expostos os povos indígenas no contexto pandêmico[3].
Neste cenário de intensificação dos agravos, iniquidades e vulnerabilidades, as mortes anunciadas de referentes indígenas aparecem como perversidade do racismo estrutural e institucional estatuído na saúde indígena. A configuração pandêmica persistente da COVID-19 entre nós repõe em circulação a herança colonialista de natureza patriarcal e patrimonial, assim como a violência ético política da desigualdade e de seus marcadores étnico-raciais antitéticos ao movimento configuracional de práticas antirracistas na tessitura social nacional.
Walmir Pereira é professor doutor no Curso de Ciências Sociais da Escola de Humanidades da Universidade do Vale do Rio dos Sinos (UNISINOS).
Notas:
1. Fonte: APIB. https://emergenciaindigena.apiboficial.org/dados_covid19/
2. Disponível em https://www.unasus.gov.br/noticia/ministerio-da-saude-lanca-medidas-para-prevenir-coronavirus-em-povos-indigenas.
3. Ação cautelar de medidas emergenciais do STF, obrigando o governo federal adotar medidas efetivas para conter a propagação de covid-19 entre os povos indígenas.
Referências:
ARTICULAÇÃO DOS POVOS INDÍGENAS DO BRASIL. APIB. Disponível em: https://emergenciaindigena.apiboficial.org/. Acesso em: 10/10/2020.
GUAJAJARA, Sonia. “Eu já nasci militando”, diz Sônia Guajajara, uma mulher indígena na linha de frente, 10/06/2020. In: Noticias de América Latina y el Caribe – Nodal. Disponível em: https://www.nodal.am/2020/06/eu-ja-nasci-militando-diz-sonia-guajajara-uma-mulher-indigena-na-linha-de-frente/. Acesso em: 14/10/2020.
MAUSS, Marcel. Ensaio sobre a Dádiva: forma e razão da troca nas sociedades arcaicas. In: Sociologia e Antropologia. São Paulo: Cosac & Naify, 2003.
PAZOS, Jesus González. Pandemia, direitos e povos indígenas, 11/08/2020. In: Revista IHU on line. Disponível em: http://www.ihu.unisinos.br/601731-pandemia-direitos-e-povos-indigenas. Acesso em: 15/10/2020.
QUIJANO, A. Dom Quixote e os moinhos de vento na América Latina. In: Estudos Avançados, v. 19 n. 55, p. 9-31, 2005. Disponível em: https://doi.org/10.1590/S0103-40142005000300002. Acesso em: 15/10/2020.
SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. Barroso indica representante do CNJ e observador do gabinete para acompanhar reuniões sobre Covid-19 em aldeias, 22/07/2020. In: STF Portal on line. Disponível em: http://portal.stf.jus.br/noticias/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=448062&ori=1. Acesso em: 14/10/2020.
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Este texto é parte de uma série de boletins sequenciais sobre a questão étnico-racial em tempos de crise que está sendo publicada ao longo das próximas semanas. Trata-se de uma ação conjunta que reúne a Associação Nacional de Pós-Graduação em Ciências Sociais (ANPOCS), a Sociedade Brasileira de Sociologia (SBS), a Associação Brasileira de Antropologia (ABA), a Associação Brasileira de Ciência Política (ABCP) e a Associação dos Cientistas Sociais da Religião do Mercosul (ACSRM). Nos canais oficiais dessas associações estamos circulando textos curtos, que apresentam trabalhos que refletiram sobre epidemias. Esse é um esforço para continuar dando visibilidade ao que produzimos e também de afirmar a relevância dessas ciências para o enfrentamento da crise que estamos atravessando.
A publicação deste boletim também conta com o apoio da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC/SC), da Associação Nacional de Pós-Graduação em Geografia (ANPEGE), da Associação Nacional de Pós-Graduação em História (ANPUH), da Associação Nacional de Pós graduação e Pesquisa em Letras e Linguística (Anpoll) e da Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Planejamento Urbano e Regional (Anpur).
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