Boletim Especial n. 25 - 07/12/2020
No Boletim n. 25, Paulo Alberto dos Santos Vieira (UNEMAT) elabora reflexões sobre a relação entre políticas públicas e a promoção ou combate às desigualdades raciais, sobretudo em países racializados com herança colonial. O processo de transição no Brasil, onde se superam mitos de homogeneidade e cordialidade, aponta a necessária articulação com políticas públicas para superação de crises.
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O que foi feito da vida no Brasil: pandemia, desigualdades, políticas públicas e relações raciais
Por Paulo Alberto dos Santos Vieira
Foto: Constituição Federal, disponível em <https://images.app.goo.gl/Qacrf8tyTBJWAyvp7>, acesso em 07 dez. 2020.
A expansão da Covid-19 ocorreu em um ritmo muito mais frenético que as liberalidades impostas pelo capital às sociedades e aos Estados (Pluri)Nacionais, em especial pelas formas financeiras do contemporâneo, responsáveis pela implementação da agenda neoliberal – em suas diversas extrações. Flexibilização, privatização, retirada de direitos em escala global, sequestro das riquezas naturais e deterioração ambiental e, em seu ápice, precarização em escala planetária têm sido algumas características destas formas contemporâneas que metamorfosearam o capital desde seu surgimento, espraiamento e o consolidando como forma de organização social (ANDRADE, 2019).
Os resultados desta reconfiguração têm sido nomeados como decomposição da vida social (TOURAINE, 2011 e 1998); surgimento de democracias de baixa intensidade (SANTOS, 2011 e 2007); e derrocada e assalto dos sistemas de bem-estar social (HARVEY, 2011).
Ao observarmos o que ocorre com a atual pandemia da Covid-19, esses elementos brevemente apontados são perceptíveis. Contudo, há algo que se renova. Parece que emergem vozes que se recusam à imbecilidade (MARIS, 2000) e cuja audiência vai aos poucos se expandindo e se conectando com um amplo conjunto de ações e iniciativas que afirmam seu potencial crítico de estabelecer um contraponto que favoreça a reflexão e a inflexão nos rumos que vimos acompanhando no mundo nas últimas três ou quatro décadas. (SIQUEIRA et al, 2003).
Em países que foram colônias e permanecem racializados, como é o caso do Brasil, cujos índices de desigualdade são ímpares em todo o mundo, a pandemia, que por si só já contém altas doses de letalidade, tem esta condição agravada. Concomitantemente, a pandemia também revela outras dimensões que mesmo hoje ainda são pouco observadas pela população em geral, pela imprensa e mesmo por especialistas. O Boletim Epidemiológico Especial do Ministério da Saúde informou que entre os dias 20 e 26 de setembro de 2020 o Brasil contava com 4.717.991 casos confirmados e 141.406 óbitos pela Covid-19, o que faz do país, em termos proporcionais, um dos mais letais em todo o mundo. (LYENTERIS, 2020).
Conforme reportagem de Fernanda Mena no Jornal Folha de São Paulo, em 10 de abril de 2020, os dados epidemiológicos quando desagregados pelo binômio cor/raça (ABRASCO, 2019) revelam a sobrerrepresentação da população negra entre contaminados e mortos; não por acaso, a obrigatoriedade do registro hospitalar ou dos cemitérios encontrou barreiras para ser plenamente instituída. São velhas práticas do racismo estrutural (ALMEIDA, 2018) e do racismo institucional (WERNECK, 2016) sendo reatualizadas.
O processo de transição pelo qual passa o Brasil – que possui a segunda maior população negra do planeta – superará vários mitos. Para Silvério e Trinidad (2012) por exemplo, a Constituição Federal de 1988 corresponde à “transição sociopolítica de uma sociedade que se representava como homogênea (do ponto de vista étnico-racial), harmônica (do ponto de vista do ideal de nação) e cordial (do ponto de vista das relações entre os indivíduos e grupos), para uma sociedade que se pensa diversa e profundamente heterogênea (do ponto de vista étnico-racial), dissonante (do ponto de vista do ideal de nação) e conflituosa (do ponto de vista das relações entre os indivíduos e grupos)”.
Quem poderia afirmar que a sociedade brasileira contaria com transformações tão profundas de sua auto representação como a criminalização do racismo, tornando-o inafiançável e imprescritível? Ter assegurada a constitucionalidade das políticas de ação afirmativa e as cotas para negros para ingresso em universidades, em concursos públicos e no mercado de trabalho? E se comprometer com a implementação, ainda que lentamente, dos artigos que compõem o Estatuto da Igualdade Racial?
A pandemia da Covid-19 inflige grande ônus à população negra que permanece sendo a “carne mais barata do mercado”. É emblemática que a primeira morte por Covid-19, no Estado do Rio de Janeiro, tenha sido de uma pessoa negra, idosa, diabética e hipertensa – doenças prevalentes na população negra – de baixa escolaridade, moradora do sul fluminense e que para evitar o deslocamento de cerca de 120 km diários, pernoitava em seu ambiente laboral no “quarto de empregada”.
Estudos recentes como os de Santos et al (2020: pp. 225-243), por exemplo, asseveram que as maiores taxas relativas à contaminação e morte têm incidido desigualmente entre os grupos sociais no Brasil. Ainda de acordo com os autores, o racismo à brasileira está na raiz desta desigual distribuição de enfermos e óbitos decorrentes da Covid-19.
Estas pesquisas auxiliam a compreender que a crise resulta não de um, mas de vários pólos como as dimensões ambientais, sanitárias, econômico-financeiras e de empregabilidade, resvalando ainda em questões da ética e da moralidade públicas.
Neste emaranhado, é preciso ter atenção às formas que os responsáveis pelas políticas públicas formulam alternativas de superação das crises. É categórico que diagnósticos já amplamente conhecidos não se atualizem impondo os maiores custos – incluindo a perda de vidas – àqueles grupos que por sua vulnerabilidade perene têm sido relegados à própria sorte.
Em tempos como os que seguem, parece ser crucial perceber que o racismo que também estrutura as desigualdades sociais no Brasil não pode ser desconsiderado nas estratégias de combate à pandemia, sob pena da racialização dos grupos sociais, e suas decorrentes hierarquias raciais, permanecerem intocadas, aprofundando assimetrias reveladoras do quanto o racismo institucional (WERNECK, 2016) decorre do estrutural, condenando a população negra a acumular as maiores perdas diante da pandemia da Covid-19.
Paulo Alberto dos Santos Vieira é Professor adjunto da UNEMAT, com pós-doutorado em Ciências da Saúde (UFRB), Doutor em Sociologia (UFSCar), Mestre em Desenvolvimento Econômico (UFU).
Bibliografia:
ABRASCO. Associação Brasileira de Saúde Coletiva. População negra e a Covid-19: desigualdades sociais e raciais ainda mais expostas. Disponível em: https://www.abrasco.org.br/site/noticias/sistemas-de-saude/populacao-negra-e-covid-19-desigualdades-sociais-e-raciais-ainda-mais-expostas/46338/. Acesso em 02.mai.2020.
ALMEIDA, Silvio Luiz de. O que é racismo estrutural?. Belo Horizonte: Letramento, 2018.
ANDRADE, Daniel Pereira. Neoliberalismo. Crise econômica, crise de representatividade democrática e reforço de governamentalidade. Disponível em: https://www.scielo.br/pdf/nec/v38n1/1980-5403-nec-38-01-109.pdf. Acesso em 08.nov.2020.
HARVEY, David. O enigma do Capital e as crises do capitalismo. São Paulo: Boitempo, 2011.
IPEA. Atlas da violência. Disponível em: http://www.ipea.gov.br/portal/images/stories/PDFs/relatorio_institucional/190605_atlas_da_violencia_2019.pdf. Acesso em 04.mai.2020.
LYNTERIS, Christos (ed.). Covid-19 Forum: Introduction. Disponível em: http://somatosphere.net/2020/covid-19-forum-introduction.html/?fbclid=IwAR2wGhzy45BFBOqGAWLVX8G9RnX0Qc4IxQjNNT0FFq823OBNxGqagzdz3HA. Acesso em 02.mai.2020.
MARIS, Bernard. Carta aberta aos gurus da economia que nos julgam imbecis. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2000.
MINISTÉRIO da Saúde. Secretaria de Vigilância Sanitária. Boletim epidemiológico especial. Disponível em: https://portalarquivos2.saude.gov.br/images/pdf/2020/October/01/Boletim-epidemiologico-COVID-33-final.pdf. Acesso em 08.nov.2020.
SANTOS, Márcia Pereira Alves dos et all. População negra e Covid-19: reflexões sobre racismo e saúde. Disponível em: https://www.scielo.br/pdf/ea/v34n99/1806-9592-ea-34-99-225.pdf. Acesso em 08.nov.2020.
SILVÉRIO, Valter Roberto e TRINIDAD, Cristina Teodoro. Há algo novo a se dizer sobre as relações raciais no Brasil contemporâneo. Disponível em: https://www.scielo.br/pdf/es/v33n120/13.pdf. Acesso em 04.nov.2020.
SIQUEIRA, Carlos Eduardo et al. A globalização dos movimentos sociais: resposta social à Globalização Corporativa Neoliberal. Disponível em: https://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1413-81232003000400002. Acesso em 02.nov.2020.
SANTOS, Boaventura de Sousa. Portugal: ensaio contra a autoflagelação. São Paulo: Cortez, 2011.
_____. Renovar a teoria crítica e reinventar a emancipação social. São Paulo: Boitempo, 2007.
TOURAINE, Alain. Após a Crise: a decomposição da vida social e o surgimento de atores não sociais. Petrópolis: Vozes, 2011.
_____. Podemos viver juntos? iguais e diferentes. Petrópolis: Vozes, 1998.
WERNECK, Jurema. Racismo institucional e saúde da população negra. Disponível em: https://www.scielo.br/pdf/sausoc/v25n3/1984-0470-sausoc-25-03-00535.pdf. Acesso em 02.nov.2020.
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Este texto é parte de uma série de boletins sequenciais sobre a questão étnico-racial em tempos de crise que está sendo publicada ao longo das próximas semanas. Trata-se de uma ação conjunta que reúne a Associação Nacional de Pós-Graduação em Ciências Sociais (ANPOCS), a Sociedade Brasileira de Sociologia (SBS), a Associação Brasileira de Antropologia (ABA), a Associação Brasileira de Ciência Política (ABCP) e a Associação dos Cientistas Sociais da Religião do Mercosul (ACSRM). Nos canais oficiais dessas associações estamos circulando textos curtos, que apresentam trabalhos que refletiram sobre epidemias. Esse é um esforço para continuar dando visibilidade ao que produzimos e também de afirmar a relevância dessas ciências para o enfrentamento da crise que estamos atravessando.
A publicação deste boletim também conta com o apoio da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC/SC), da Associação Nacional de Pós-Graduação em Geografia (ANPEGE), da Associação Nacional de Pós-Graduação em História (ANPUH), da Associação Nacional de Pós graduação e Pesquisa em Letras e Linguística (Anpoll) e da Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Planejamento Urbano e Regional (Anpur).
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