Boletim Especial n. 42 - 18/01/2021
No Boletim n. 42, Lourival Aguiar Teixeira Custódio (USP) elabora sobre a persistência do racismo em Cuba e sua relação com os impactos da Covid-19. Os chamados "palestinos" em Havana são migrantes, sobretudo negros e mestiços, que fogem da miséria nas regiões rurais em direção aos centros urbanos. Os preconceitos raciais e espaciais se conectam nas práticas que marginalizam os "palestinos" por meio de estereótipos e restrições no acesso a recursos e cuidados.
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Desigualdades e a Covid-19: o caso dos Palestinos em Havana
Por Lourival Aguiar Teixeira Custódio
Foto: O Capitólio, cidade de Havana/ Cuba. Arquivo pessoal do autor.
Em Cuba, há um cenário de relações raciais que é mediada pelo governo socialista cubano. Em 1962, Fidel Castro, líder da Revolução Cubana de 1959, decretou o fim do racismo em Cuba. Porém, diversos autores questionam a aplicabilidade deste decreto, uma vez que o racismo persiste mesmo após sua extinção oficial. Com a queda da União Soviética, Cuba mergulhou em uma grande crise econômica, chamada de “Período Especial”. Durante a crise, muitos cubanos das regiões rurais migraram para os centros urbanos como forma de fugir da miséria.
O destino desses migrantes foram as regiões com pouca infraestrutura de moradia, ocasionando aumento da densidade populacional e os expondo a condições precárias de moradia e empregabilidade. Essa migração, que é considerada ilegal no país, levou-os a serem chamados no jargão popular de “palestinos” pelos moradores de Havana. Esse termo, carregado de xenofobia e racismo, esteve presente em minhas visitas a Cuba, sempre direcionado a pessoas não brancas, sem nenhuma relação direta com a situação política entre Palestina e Israel. Durante a Pandemia da COVID-19, muitos dos bairros que hoje abrigam os chamados palestinos, que são em sua maioria empobrecidos, sofrem com a falta de infraestrutura sanitária, o que faz com que estejam entre os lugares com mais casos. Estes cubanos sofrem com a falta de alimentos e com a espera por horas em filas para comprar insumos básicos[1]. Isso porque são mais vulneráveis à infecção pelo novo coronavírus, uma vez que não possuem condições estruturais para evitar a contaminação e sentem mais os efeitos da crise econômica que acompanha o cenário da pandemia.
As relações raciais em Cuba despertam curiosidade em pesquisadores de relações raciais e ativistas antirracistas de diversas partes do mundo. A curiosidade que envolve essa questão está relacionada com a declaração de 1962 do comandante da Revolução Cubana de 1959, Fidel Castro. Durante um de seus discurso na ilha, Fidel decretou o fim do racismo
Cuba, el país latinoamericano que ha convertido en dueños de las tierras a más de 100 000 pequeños agricultores (APLAUSOS), […], cuadruplicado los servicios médicos, nacionalizado las empresas monopolistas (APLAUSOS), suprimido el abusivo sistema que convertía la vivienda en un medio de explotación para el pueblo, eliminado virtualmente el desempleo, suprimido la discriminación por motivo de raza o sexo (APLAUSOS), […] armado al pueblo (APLAUSOS), hecho realidad viva el disfrute de los derechos humanos al librar al hombre y a la mujer de la explotación, la incultura y la desigualdad social (Castro, 1962)[2]
No entendimento de Fidel Castro, ao assumir o caráter socialista da Revolução de 1959, este modelo econômico socialista seria, em teoria, incompatível com o racismo e o machismo, estando essas opressões, então, extintas. Apesar de o governo cubano propagandear o fim do racismo como um dos seus feitos, diversos autores como De la Fuente (2001), Sawyer (2006), Fernandes (2007), Fernández (2010), Perry (2016) apontam para diferentes aspectos da persistência das desigualdades raciais em Cuba. Nas pesquisas de Pablo Rodríguez Ruíz (2006, 2008), o autor destaca um fenômeno que envolve a persistência de uma herança estrutural do racismo que impactou em especial a questão da moradia em Cuba. Os problemas de moradia geram uma desigualdade material entre brancos e não brancos em Cuba, impactando especialmente a população afro-cubana. Se o sistema de saúde cubano garante acesso universal a uma das melhores medicinas do mundo, a crise econômica gerada pelo novo coronavírus, associada ao recrudescimento dos embargos dos EUA a ilha[3], faz com que para muitos cubanos, a possibilidade de morrer por COVID-19 seja, muitas vezes, o menor dos problemas.
Foi durante o “Período Especial”[4] que houve uma extensa migração de cubanos das regiões rurais e do leste da ilha para as metrópoles. Eles buscavam melhores condições de moradia, movimento que era (e segue sendo) tratado como ilegal pelo governo cubano, uma vez que burlava seu plano de planificação econômica. Esse fluxo migratório, que teve a cidade de Havana como um dos principais focos, levou ao fortalecimento de desigualdades sociais relacionadas às moradias em Cuba. Uma expressão dessa desigualdade está no fortalecimento de um estereótipo negativo ligado às regiões em que esses migrantes se instalavam, uma vez que a baixa qualidade de suas residências e a ausência de uma boa infraestrutura básica garantida pelo governo deixavam essa parcela da população exposta a doenças. Os “palestinos”, como ficaram conhecidos os migrantes que habitam esses lugares, receberam esta alcunha porque “estariam invadindo as terras que não lhe pertenciam”, como me disse um interlocutor. Durante a crise do novo Coronavírus, especialistas relatam que está em curso uma nova crise, que pode impulsionar um novo ciclo migratório[5], principalmente porque agora o turismo, que foi a válvula de escape para a economia durante o Período Especial, foi o setor mais afetado pela pandemia.
A pandemia do coronavírus contribui para observar que o racismo segue se manifestando em Cuba, assim como ele é potencializado em situações sociais que acentuam desigualdades, como a crise econômica do começo dos anos 1990 ou a que está em curso no atual contexto. A situação que envolve o estigma de “palestino” mostra uma outra demarcação, uma vez que cria uma ideia de “nós e eles” que envolve não apenas um regionalismo xenofóbico mas também uma espécie de racismo. A pesquisadora Leila de Oliveira irá trabalhar com o termo “Xenoracismo” para lidar com a intersecção entre esses dois fenômenos:
Já o imigrante não branco é visto e tratado costumeiramente como inferior; desqualificado; portador, em potencial, de doenças infecciosas; traficante; miserável; [...] se é verdade que, por outro lado, que o conceito de racismo não é suficiente para diferenciar a situação dos negros nativos e dos estrangeiros, recorremos, ao longo desse trabalho, ao conceito de xenoracismo. (Oliveira, Leila Maria 2019, p.61)
Aqui, o xenoracismo pode ser aplicado para explicar a relação entre preconceito espacial e preconceito racial encontrada no termo “palestino”, que notei pela primeira vez em minhas viagens a Havana entre 2018 e 2020. O termo não estava apenas relacionado com uma ideia de migração, mas vinculada com uma forte noção de racialidade: são comuns relatos sobre os palestinos que destacam o fato de eles pertencerem a grupos étnicos não brancos, em especial mestiços (mestizos) e pretos (negros)[6], inclusive com relatos de tratamentos diferentes entre migrantes de diferentes cores de pele[7]. À essa lógica, agrega-se os comentários de que certos bairros se tornaram perigosos ou marginais por conta da presença dos palestinos, como escutei algumas vezes durante minhas visitas à ilha.
Durante a pandemia da COVID-19, Cuba também sofreu com a violência policial contra negros. No final de junho, um jovem negro, Hansel Hernández Galiano, foi assassinado pela polícia em Havana, o que gerou indignação na população e motivou alguns atos contra a polícia[8]. Pretos e mestiços, que já residem no país, possuem sua vivência atrelada aos locais mais pobres e vulneráveis, são obrigados a se exporem ao coronavírus para, como se diz em Havana, salir a buscar los cuatro quilos, ou seja, fazer o necessário para ter o que comer. Mantendo contato com meus interlocutores, escutei relatos de que os "palestinos são desobedientes" e que eles "não respeitam o isolamento, por isso as contaminações não paravam". Agora, além de serem vistos como perigosos por serem marginais, essa parcela da população também é vista como vetor de contaminação.
Em entrevistas realizadas com moradores de diversas regiões de Havana, pude constatar que existe um estigma contra os moradores de determinados bairros da cidade, que são bairros vistos como “barrios malos” e muitos deles têm este estigma pela presença de pretos e mestiços, que recebem fama de beberrões, brigões e festeiros, características muitas vezes também associadas à presença de palestinos. No bairro de Pogolotti, que fica na região oeste de Havana, existe uma parte que se chama “Isla del Polvo” (ilha do pó, devido à falta de asfalto que faz com que areia e poeira entrem sempre na casa), que é um dos piores lugares do bairro, segundo alguns moradores da cidade, uma vez que estaria “cheio de palestinos”. Um interlocutor, que era preto, chegou a me alertar sobre a região: “é aonde vivem os pretos (negros) e palestinos, que fazem muita arruaça, então é melhor você ficar longe”. Ao visitar essa parte do bairro, percebi as precárias condições de moradia e também a desigualdade social frente a outros bairros da cidade.
Compreendo que existe aqui uma manifestação da persistência do racismo em Cuba, considerando que determinados espaços são carregados de estereótipos negativos quando relacionados à população preta e mestiça da cidade. Ao associar a responsabilidade da proliferação de uma doença ao comportamento de determinado grupo étnico-racial, o racismo cria no imaginário local um medo não apenas contra esse grupo, mas também contra os lugares que são por eles habitados. Ainda ligado a esse aspecto, conta-se também com um aumento do policiamento nos bairros mais periféricos, motivado por uma preocupação do governo com o comportamento dos moradores dessas regiões quanto ao isolamento social. Dessa forma, a crise do novo coronavírus também aumenta os reflexos do xenoracismo contra pretos e mestiços em Cuba que, além de lidarem com a pandemia e a crise econômica, também têm que lidar com as desigualdades raciais e sociais preexistentes e persistentes em Cuba.
Lourival Aguiar Teixeira Custódio é Doutorando em Antropologia pela Universidade de São Paulo (USP), desenvolve a pesquisa em questão através de Projeto Financiado por bolsa da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes), código de financiamento 001.
Notas:
1. Para ler mais: https://br.reuters.com/article/salud-coronavirus-cuba-desigualdad-idLTAKBN2332VZ Acessado em 16 de outubro de 2020.
2. Castro, Fidel. Segunda declaración de La Habana. Disponível em: http://www.cuba.cu/gobierno/discursos/1962/esp/f040262e.html. Acesso em: 25/11/2020.
3. Para saber mais: https://www.dw.com/pt-br/coronav%C3%ADrus-empurra-cuba-de-volta-%C3%A0-crise/a-54026231 Acesso em: 14/09/2020.
4. Importante crise social e econômica que assolou Cuba durante a década de 1990, motivada pela queda do bloco socialista e da mudança das relações econômicas entre Cuba e a União Soviética.
5. Fonte: https://www.dw.com/pt-br/coronav%C3%ADrus-empurra-cuba-de-volta-%C3%A0-crise/a-54026231. Acesso em: 09/09/2020.
6. As categorias negro e mestizo são categorias da prática utilizadas em Cuba e que irei adotar para falar da população não branca.
7. Fonte: https://www.cubanet.org/destacados/cuba-palestinos-la-discriminacion-invisible/ Acesso em: 15/09/2020.
8. Fonte: https://www.bbc.com/mundo/noticias-america-latina-53226638 Acesso em: 14/08/2020.
Referências:
DE LA FUENTE, Alejandro. A Nation for All: Race. Inequality. and Politics in Twentieth-Century Cuba. 2001.
ESPINA PRIETO, Rodrigo, RODRÍGUEZ RUÍZ, Pablo. Raza y desigualdad en la Cuba actual. In: Revista Temas, no. 45, enero-marzo, 2006, p.p. 44-54. Disponível em: http://afrocubaweb.com/News/Cuba/RazaDesigualdad_Rodrigo.pdf . Acesso em: 19/08/2020
FERNANDES, Sujatha. Cuba Represent! Cuban Arts, State Power, and the Making of New Revolutionary Cultures. Chicago, USA: University of Chicago Press, 2007.
FERNÁNDEZ, Nadine. Revolutionizing Romance: Interracial Couples in Contemporary Cuba. New Brunswick NJ: Rutgers University Press, 2010.
OFICINA NACIONAL DE ESTADISTICA E INFORMACIÓN (ONE). Centro de Estudios de Población y Desarrollo. El color de la Piel según el Censo de Población y Viviendas. Disponível em: http://one.cu/publicaciones/cepde/cpv2012/elcolordelapielcenso2012/PUBLICACIÓN%20%20COMPLETA%20color%20de%20la%20piel%20.pdf. Acesso em: 19/08/2019.
OLIVEIRA, Leila Maria. Imigrantes, xenofobia e racismo: uma análise de conflitos em escolas municipais de São Paulo. 2019. Tese (Doutorado em Educação) – Programa de Pós-graduação em Educação: Currículo. Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC). São Paulo, 2019.
PERRY, Marc D. Negro soy yo: Hip Hop and Raced Citizenship in Neoliberal Cuba. Durham, NC: Duke University Press, 2016.
RODRÍGUEZ RUIZ, Pablo; ESTÉVEZ MEZQUÍA, Claudio. Familia, uniones matrimoniales y sexualidad en la pobreza y la marginalidad: el llega y pón, un estudio de caso. In: Catauro - Revista Cubana de Antropología, vol. 8, n. 14, p.p. 5-31, 2006.
RODRÍGUEZ RUÍZ, Pablo. Espacios y contextos del debate racial actual en Cuba. In: Temas, Ciudad de La Habana, n. 53, enero- marzo, p.p. 86-96, 2008.
SAWYER, Mark Q. Racial politics in Post-Revolutionary Cuba. Los Angeles, EUA: Cambridge, University of California, 2006.
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Este texto é parte de uma série de boletins sequenciais sobre a questão étnico-racial em tempos de crise que está sendo publicada ao longo das próximas semanas. Trata-se de uma ação conjunta que reúne a Associação Nacional de Pós-Graduação em Ciências Sociais (ANPOCS), a Sociedade Brasileira de Sociologia (SBS), a Associação Brasileira de Antropologia (ABA), a Associação Brasileira de Ciência Política (ABCP) e a Associação dos Cientistas Sociais da Religião do Mercosul (ACSRM). Nos canais oficiais dessas associações estamos circulando textos curtos, que apresentam trabalhos que refletiram sobre epidemias. Esse é um esforço para continuar dando visibilidade ao que produzimos e também de afirmar a relevância dessas ciências para o enfrentamento da crise que estamos atravessando.
A publicação deste boletim também conta com o apoio da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC/SC), da Associação Nacional de Pós-Graduação em Geografia (ANPEGE), da Associação Nacional de Pós-Graduação em História (ANPUH), da Associação Nacional de Pós graduação e Pesquisa em Letras e Linguística (Anpoll) e da Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Planejamento Urbano e Regional (Anpur).
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